Câncer - o curso de uma luta.

 

Helio de Araujo Evangelista

 

A internação 

 

            13 de agosto de 1999

            Encontrava-me na emergência de um hospital, absorto, forçado a olhar para o teto, esperando a definição de qual hospital eu finalmente seria internado, pois onde estava não havia mais vaga.

            Com a perna direita muito inchada, era uma trombose, foi-me recomendado total repouso, e, naquela situação, pensava ... pensava na morte ... no que ocorreu na vida ... o que estaria por vir...

            Fora da sala de emergência, num desespero só, minha esposa Heloisa procurava bravamente um bom hospital que pudesse me receber.

            Após seis horas, enfim, me foi obtida a internação na Beneficência Portuguesa do Rio de Janeiro, vindo a ocupar a última vaga a que o plano de saúde tinha direito naquele hospital.

            Neste hospital, ocorreu uma série de testes, exames, visitas de vários médicos, tudo no intuito de compreender a origem da trombose na perna. E com o tempo, após sete dias de internação, foi diagnosticado um tumor maligno com o tamanho de 11 por 16 centímetros na altura do abdômen.

            A notícia, de um certo modo, não nos pegou de surpresa, isto porque, no dia 13, através de um exame, foi constatado que o inchaço na perna era provocado por uma massa, faltava, no entanto, compreender as características dessa massa.

 

            Neste período, paulatinamente, ia sendo decomposto o perfil de quem tinha um forte ritmo de trabalho em favor de um outro, um perfil novo para mim, a de um doente com câncer.

            Caracterizada a tisiologia do câncer, na semana posterior à internação, foi iniciada a quimioterapia que compreendeu 28 aplicações divididas em quatro ciclos, sendo que cada um tinha uma semana que eu denominava como pesada pois consistiam 5 aplicações numa mesma semana, tendo uma duração média de 4 horas para mais, e duas outras semanas subseqüentes à pesada, que as denominava como leves, pois consistiam de uma só aplicação por semana, com duração aproximada de uma hora. O tratamento não previa interrupções, de modo que após um ciclo logo se seguia um outro.

 

            Ao olhar para este período do tratamento, percebe-se, claramente, a existência de duas grandes e fortes dimensões da situação.

            De um lado, temos o aspecto orgânico, em nome do qual ocorreu todo um esforço que salientava a importância do corpo, ocorrendo para isto uma série de consultas à médicos, exames de diferentes tipos e adoção de remédios.

            Por outro lado, porém, me pareceu muito claro uma outra dimensão que tomava vulto à medida que se avançava o tratamento, a saber: o câncer é uma doença que desafia a tua escala de valores, as tuas crenças, os teus afetos, e coloca-nos numa situação onde o sentido da vida é seriamente questionado pois a noção da morte torna-se mais viva. E aí percebe-se que é fundamental, para quem queira combater o câncer a perda do temor da morte. O medo da morte paralisa, nos cria um desânimo, nos deixa reticente, desperançoso, e com isto descuidamos do corpo.

 

O corpo

 

            Durante o tratamento, o corpo nunca mereceu tanta importância!

            Havia um acentuado cuidado com o sistema imunológico, e para isto ocorreu uma série de exames de sangue; havia ainda a recomendação de se beber muito líquido para facilitar a saída dos metais advindos da quimioterapia; tomava-se o cuidado com o estômago, procurando-se comidas de fácil digestão em períodos críticos do tratamento; considerou-se atenção especial ao pulmão, procurou-se afastar qualquer risco proveniente de um resfriado, e tantos outros pormenores que preenchiam as circunstâncias do tratamento, tais como, o não uso de pasta de dente em certos períodos do tratamento pois o gosto da pasta despertava ânsias de vômito, etc.

            Este cuidado com o corpo, extremamente necessário ao bom sucesso do tratamento, surpreendia-me pela sua intensidade, pois toda a minha capacidade de raciocínio e disciplina deixava de estar alicerçada a questões correntes de um dia a dia de uma pessoa saudável em favor de uma série de minúcias que passavam a ficar pertinentes.

            Sentia uma clara eclipse na minha capacidade de trabalho; já não podia mais ler, por exemplo, muito menos escrever ... o entretenimento passava necessariamente pelo olhar ... Como acompanhei novelas! ... Mas só em certas épocas, pois em outras, principalmente nos dois ciclos finais de quimioterapia, o topor e o cansaço eram muito acentuados.

            Porém, a medida que entrava nas duas semanas leves, que precediam uma semana pesada, notava-se um lento, mas claro, reerguimento do corpo; o apetite voltava, já escovava melhor os dentes, tomava banho com maior asseio, minhas funções intestinais ficavam regularizadas, já lia com mais facilidade, ... a mente ficava mais clara e, assim, retomava os passos de dias mais agradáveis, ... porém, sem sair de casa, só saia de casa para assuntos médicos !

            Acredito que esta disciplina em obedecer as orientações médicas quanto ao sistema imunológico, que incluia o cuidado de não me expor, foi fundamental para o tratamento quimioterápico ter ocorrido sem nenhuma interrupção.

            Além da reclusão, outro cuidado foi com as veias do braço pelas quais eram injetadas as medicações, assim como, realizadas coletas de material para exame. Três vezes ao dia, com ½ hora cada, mergulhava os braços em água fria, originada por blocos de gelo, no intuito de estimular a saída dos metais remanescentes nas veias para que pudessem ser reutilizadas em outras oportunidades. Era um tratamento doloroso, pois os braços após cada aplicação de água fria ficavam completamente gelados, mas isto não poderia ser evitado pois havia dias, os da semana pesada, que não era possível fazer coisa alguma, assim procurava um tratamento mais intenso em épocas propícias.

            Logo, o corpo e suas respectivas condições ditavam o ritmo dos dias, horas e minutos.

            Este confinamento às questões corporais não deixava de ser uma forte redução do que um ser humano pode ser; é como se a sua criatividade, inventividade, atos de vontade estivessem, pelo menos temporariamente, aprisionados pelo organismo. Como viver nesta condição por muito mais tempo ? Uma pessoa que tenha esclerose múltipla, por exemplo, certamente vive esta situação de forma contínua e perene, e como libertar o espírito num quadro tão duro como este ?

 

A inveja

 

            Gostaria aqui de fazer uma confissão.

            Sinceramente, sentia inveja. Ao olhar pela janela via as pessoas transitando, sendo estas jovens, maduras ou idosas, mas andavam, conversavam, sorriam, enfim tinham saúde.

            Quando saia de casa para algum exame, ou medicação, sentia de perto o burburinho do cotidiano. Embora sempre saísse de carro ou de táxi, percebia, pela janela, o trânsito e os deslocamentos das pessoas; a luz solar, quando havia, aquecia com mais força, embora não pudesse deixar o corpo exposto ao sol devido as reações que isto poderia ter com os quimioterápicos adotados no tratamento, poderiam surgir manchas na pele.

            Mas não deixava de haver um consolo através de meu sobrinho Gabriel, com menos de um ano de vida.

            Embora não pudesse retê-lo nos braços, que encontravam-se doloridos com a seqüência das aplicações quimioterápicas, podia brincar com ele na cama e perceber aquela recente mensagem de Deus à família tomar forma e crescer em simpatia.

            Gabriel é um sobrinho muito simpático e comilão, era capaz de abandonar sua sopa em favor da comida do prato do seu pai e terminar sua ceia mamando o peito de sua mãe.  Mas isto não lhe tirava o encanto, pelo contrário . Ele não parava, o que mais queria era colo, ele sempre buscava um colo, de preferência, diferente. Adorava uma novidade. Para ele, cada dia, era um eterno presente. Dormia pouco, e solicitava muito de todos. Como ele criava um ambiente !

            Como aquele ser minúsculo gerava alegria, pontuava de uma forma singela um ambiente, que por força da minha doença poderia ficar por demais sombrio. Gabriel não permitia que isto ocorresse e nem que minha inveja crescesse !

 

As visitas

 

            Tão logo ocorreu a notícia de minha doença, uma série de pessoas passou a telefonar e visitar-me .

            Surpreendeu-me neste período a serenidade que demonstrava para falar com cada um e dar detalhes do que vinha sendo realizado até então .

            Não desconheço a extrema utilidade destas visitas, mesmo quando realizadas por quem tinha pouco a dizer. A presença física, ou a disposição de telefonar e falar, assinalavam gestos que aqueciam !

            É como se diante de um drama, uma inata tendência à solidariedade viesse a ser despertada e as pessoas acorressem no intuito de querer ajudar de alguma forma, mesmo apenas olhando.

            A um doente, quando este encontra-se sereno, as visitas servem como contrapontos à sequência do tempo que se mostra monótona, rotineira, marcada pela dependência que nós temos das decisões alheias.

            Não é possível desconhecer, também, as visitas pouco nobres! As visitas marcadas pela curiosidade. O doente passa a ser uma peça de mostruário, ou ainda, a visita de quem tem o intuito de sondar o terreno em função de aspectos sem relação direta com a melhoria da saúde do paciente. Mas mesmo assim, estas visitas, tendo-se o devido cuidado, também são úteis.

            Ao longo do tempo de meu tratamento, as visitas foram escasseando, não só por que a situação encontrava-se relativamente sem grande novidade, mas também porque passei deliberadamente a restringi-las. 

            O avanço do tratamento quimioterápico fragilizava cada vez mais o corpo, e o tornava mais vulnerável a infeções que poderiam ser contraídas nas visitas.

            Assim, olhando para este período das visitas, percebia-se a força que um doente tem. Ele, no fundo, vivencia uma situação pela qual qualquer um pode passar, e sua atitude dá exemplo de como encará-la.

            Nas pessoas, percebia-se carinho e atenção. É como se a condição de doente representasse para elas uma situação de luta. Luta que eu tratava, e que elas se viam na situação de torcedoras .

 

            Pode parecer estranho, mas o tema das visitas nos remete a um outra, o das visitas interiores, ou seja, num período de completa inatividade, a mente fica exposta e disposta a tratar diferentes assuntos. Esta disposição, no entanto, está norteada por uma circunstância muito violenta. O tumor agride o corpo, e o tratamento destinado a extirpá-lo também o agride.

            Sendo assim, as ondas das reflexões estão pendentes dos volumes das dores!

            E não raro, havia horas que não se tinha material algum para pensar, e isto era um risco, pois conseguia-se nestes momentos apalpar a demência e o desequilíbrio mental.

            Mas o que chama a atenção nas características das reflexões que passaram pela mente durante o tratamento é a sua dependência de como o doente encara a morte.

            O medo da morte certamente introduz o desespero e uma forte desesperança diante de tudo que é feito para se obter a cura. Porém, se a pessoa detêm outra referência, tendo a morte como algo inerente à nossa condição, torna-se possível recebermos reflexões mais agradáveis.

            Nos primeiros momentos do tratamento, a tendência é de resolvermos uma série de pendências que existiam mas que não vieram a ser pensadas dado o ritmo da vida ordinária.

            Porém, sendo estendido o tempo do tratamento, as decisões tomadas passam a ser como cascas velhas sem muito serventia para o momento. E aí vai assomando uma reflexão mais crua sobre a vida. Uma vida despida dos afazeres, e sim a vida enquanto vida.

            Entender a validade da vida tendo por base o tempo cronológico que dispomos ( 40,60 ou 80 anos ), não parece ser o caminho mais adequado, pois, a rigor, a vida é muito curta ! A cura de uma doença, deste modo, significa o adiamento de um desfecho inexorável.

            Sendo assim , poderíamos dividir as visitas interiores em dois grandes tipos. O primeiro seria marcado pela instauração de uma ânsia de se ter claro o sentido da vida, o porque da luta pela vida, e qual o sentido da dor. O segundo tipo viria na direção de não se pensar nisto, é como se houvesse um esforço, talvez fuga, de buscar pontos de reflexão que evitassem todo e qualquer pensamento que estivesse relacionado ao porquê  ... e quando este ocorresse, ele seria marcado por tanto pessimismo que seria melhor que a pessoa não pensasse...

O tempo

 

            A internação no hospital, a notícia do câncer e início da quimioterapia no espaço de dez dias significou uma total mudança do meu cotidiano.

            Se antes os planos e projetos envolviam noção de semanas e meses, diante do novo quadro o máximo permitido pelo bom senso era uma projeção que nos levasse a imaginar o término da quimioterapia, ou seja, a noção de tempo restringia-se a algumas semanas.

            A agenda de trabalho ficou subitamente limpa. Encontros, seminários, palestras, foram pulverizados diante da nova situação. No lugar, uma noção de tempo muito restrita tomou vulto, por exemplo, nos dias duros da quimioterapia entre a entrada e saída do banheiro para tomar banho eu demorava uma hora, isto quando ocorria o banho. As refeições eram morosas, o tempo utilizado não era pequeno.

            Mesmo diante das visitas, que não raro mostravam-se ansiosas quanto as perspectivas de meu restabelecimento, não sabia o que dizer, a rigor, não afirmava nada. Afinal, não tinha como me antecipar aos acontecimentos do meu tratamento.

            Interessante notar que nesta situação de total estreiteza na relação com o tempo, ocorria uma noção muito mais larga e fecunda da vida, qual seja, por força da doença, percebia-se de forma clara a brevidade da vida e a perspectiva da morte me levava a pensar no silêncio que esta representa. E a partir deste dois umbrais, a do tempo minúsculo dimensionado em horas e alguns dias, e o tempo da morte que significava a extinção da noção do tempo, pude melhor pensar na urgência de se ter um sentido para vida, um sentido tal que incluísse como perspectiva a morte.

            Entendo que um sentido que só leve em conta o aqui, e o agora, é simplesmente enganador. Pois diante de uma mazela na vida este castelo de carta rui facilmente. É uma concepção que não se sustenta ao longo de toda vida.

            Assim como, uma concepção que só leve em conta uma dimensão humana enfrenta na morte um motivo de profundo desespero ou angústia, ou então, um arraigado cinismo, como se morrer ou viver viessem a ser equivalentes.

            A impressão que surge, é que os seres humanos tem uma imensa ânsia por eternidade. E para tanto é necessário que desenvolvamos faculdades que tornem a noção do eterno mais próximo à nossa vida ordinária.

            De um certo modo, não posso deixar de sentir-me privilegiado por vivenciar isto. Embora tenha, o aprendizado, decorrido de tamanha dor.

            A dor nos leva a considerar noções de tempo menos dispersas e nos ajuda a concentrar naquilo que funda o nosso ato de existir, qual seja, uma noção mais clara da brevidade da vida e o nosso desafio de encararmos este período de tempo disponível como que a única oportunidade de nos abrirmos para o eterno !

            É um desafio, mas é uma encruzilhada que nos distingue de um outro ser que não dispõe de consciência de si mesmo.

 

A oração

 

            “... Não vem de nós, vem de seu favor, pois sem ti, ninguém, ninguém pode ser bom, só tu podes criar a vida interior ...”

            Fora este fragmento de uma música que eu aprendi no tempo de grupo jovem da Igreja Santa Terezinha há vinte anos atrás, na seqüência do tratamento me surgiu uma outra frase alterada a partir da mencionada acima : “... não vem de nós, vem do seu favor, pois sem ti, ninguém, ninguém pode ser forte, só tu podes criar a força interior ...”

            Assim, eu ia cantando no banheiro, ou fora dele e nos momentos particulares das dores, inclusive cantava esta outra música: “... sobe a Jerusalém Virgem oferente sem igual, vá apresentar ao pai, seu menino luz que nasceu no Natal ...”

            E nos momentos que me exigiam particular heroísmo, principalmente ao término das chamadas semanas pesadas recorria a Dom Alvaro Del Portillo, que foi engenheiro e tinha uma visão muito pragmática  “.. que eu tenha uma cabeça de engenheiro , Dom Alvaro...”, e oferecia aqueles momentos por determinadas intenções.

            Assim, eu ia atravessando os mares.

            Outro ponto culminante nesta travessia era quando eu comungava Deus; era possível perceber nitidamente o valor da dor, da cruz, para inteirar melhor da pessoa de Jesus Cristo. A dor santifica, se bem aceita.

            Naturalmente, que não defendo aqui a busca da dor para melhor se aproximar de Deus. A dor não é o único acesso até Deus. Mas, quando ela vem, nos fica mais claro os ensinamentos da cruz. A dor, quando aceita, vai nos retirando antigas cascas e vai deixando uma pele nova, tais como, a tolerância, a paciência, a visão de sua própria mediocridade comparada a dos outros ...

            Não é fácil orar! Paulatinamente, você percebe que ora pouco e mal. Este aproximar-se do infinito, através de nossos parcos meios humanos ( a fala, o pensamento ), pouco nos introduz no contato com Deus, percebe-se que este contato há de ocorrer entre corações . O estabelecimento da intimidade com Deus exige um desnudamento das certezas, das conquistas, cabe uma atitude de infância espiritual, uma genuína e gratuita busca de Deus sem esperar retornos.

            Não poderia deixar de mencionar aqui os que rezaram por mim, que não foram poucos. Numa recente edição de um Jornal Católico “O Testemunho da Fé”, ano VIII, nº 125, 15 a 30 de novembro de 1999, é mencionada uma pesquisa realizada nos Estados Unidos, a qual atesta a eficácia da oração em favor dos doentes. A leitura desta reportagem me deixou muito emocionado, pois, afinal, quanto não devo àqueles que rezaram por min ?

 

Os passos da cura

 

            Já no hospital, em nosso primeiro dia, minha esposa Heloisa muito preocupada encostou-se ao meu peito e disse: “ Eu não quero te perder”. Em resposta afirmei: confie em Deus...

            Acredito que minha cura começou a partir deste momento, um momento que trazia a união entre o gesto de solidariedade e o ato da fé. Ao longo do tratamento, tanto um quanto outro viabilizaram a travessia dos difíceis momentos.

            Já na primeira semana de quimioterapia, a perna que até então estava inchada, voltou ao seu tamanho normal. O tumor que até então comprimia a veia ilíaca deixou de fazê-lo pois já respondia, regredindo no tamanho, positivamente ao tratamento.

            Em seguida, na seqüência dos dias, as injeções diárias administradas em casa para manter um controle sobre a trombose ocorrida na perna, correlatos aos remédios para evitar enjôos provocados pela quimioterapia, permeavam um cotidiano no qual não se tinha muito clareza quanto ao que se dava no interior do corpo. O verificado com a perna era um sinal, mas só !

            Durante as aplicações de quimioterapia na clínica, diferentes conversas ocorreram com pessoas que passavam por experiências semelhantes. E destes encontros, surgiu-nos uma visão muito clara das incertezas que o câncer proporciona às pessoas.

            O câncer não é uma doença comum, não são poucos os casos dos que tendo um tumor num órgão passem a tê-lo em outro e há quem fique combatendo durante anos um tumor.

                Minha esposa esteve ao meu lado em todos os dias de aplicação da quimioterapia. Imagino como não foi maçante, para uma pessoa sadia, ficar sentada quatro horas ou mais esperando o término das aplicações: mas confesso como me fazia bem aquela presença, mesmo quando ela se apresentava sonolenta.

            Ao final de setembro, realizamos um exame para analisar a trombose da perna, e para nossa grata surpresa foi possível constatar que o tumor, embora ainda rechaçasse a veia ilíaca, já tinha um tamanho reduzido, ou seja, apresentava 5 x 3 centímetros.

            Durante o exame, e constatada a redução, o que deixou a médica muito surpresa, fiquei muito emocionado e chorei em silêncio.

            Mas apesar desta vitória, eu não me deixava vencer pela euforia, sabia claramente que os sinais eram positivos ( 1º a perna que perdia o inchaço; 2º a redução do tumor ), mas não eram definitivos. Aliás, este é um dos grandes perigos que correm a pessoas que combatem um câncer. Não cabe celebrar a vitória antes da hora. Caso isto ocorra e sobrevêm uma mudança do quadro clínico, há um forte desânimo e a disposição de luta fica minada. É importante saber esperar ! Sabia que ainda tinha um longo caminho pela frente, o que incluiria muita dor. A rigor, os sinais positivos apenas me reconfortavam ao perceber frutos dos procedimentos adotados.

            Num outro exame, com o mesmo objetivo de acompanhar a trombose, foi constatado uma redução do tumor ( 2,8 x 2,9  centímetros ) e que não era possível detectar sua vascularização. A impressão que dava é que o tumor ficara achatado, tanto que a veia que até então tinha seu curso alterado pelo tumor voltou ao seu sentido original.

            Embora o exame realizado fosse próprio para analisar os cursos sangüíneos e não tumores, o mesmo nos auxiliava a ter uma idéia do que ocorria no corpo.

            No dia 10 de novembro de 1999 tive a minha última aplicação de quimioterapia, e a partir daí me foi possível recuperar-me dos efeitos do tratamento.

            Faltariam aqui palavras, e melhor competência na redação, para descrever os sentimentos e emoções que povoaram o meu íntimo após o término da quimioterapia. Passei a comer e dormir melhor. O fato de não mais ter o compromisso semanal da quimioterapia me proporcionava um especial deleite.

            Paulatinamente, fui recuperando espaços perdidos. Após três semanas, tendo recuperado o sistema imunológico, já saía à rua, via as pessoas não mais pelas janelas.

            Voltei a ir à missa e encontrei na Igreja o mesmo altar, os bancos ... como se estivessem esperando por min...

            Passei a sair, a ir ao cinema.

            Como era bom estar vivo !

            Saía com Heloisa, e fazia compras.

            Enfim, paulatinamente, crescia, muito embora ainda sentisse os efeitos do tempo paralisado em função da quimioterapia. Assim, passei a andar para recuperar a forma, de modo que os cansaços, tonturas e até mesmo as mãos e os pés inchados foram cedendo espaço para uma pessoa que até então vivia num verdadeiro claustro.

 

 

 

 

A grande notícia

 

            Após levantar-me da maca do aparelho de tomografia computadorizada, a médica que fez o exame, de modo alegre, disse: “você fez um excelente tratamento, não consegui ver tumor algum, mas conviria esperar o laudo definitivo pois poderei examinar melhor as imagens obtidas.”

            Foram poucas as palavras, mas como elas entraram em meu ser e geraram um contentamento avassalador.

            A notícia foi se propagando no meu corpo, aumentando o desejo de se agradecer pelo dom da vida, tendo plena ciência de que estava renascendo.

            E, paulatinamente, a notícia atingia outras pessoas, a começar pela minha esposa, uma grande companheira.

            A alegria, a surpresa, o desanuviamento eram os sentimentos provocados nas pessoas que acompanhavam minha situação.

            Em seguida, o cotidiano começava a ter uma nova forma. É como se tivesse ocorrido um sinal verde na vida e você passasse a se dar o direito de planejar

 

            E a sequência dos dias avançava e convidava para uma nova vida !

            Lá vou eu !

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Conclusão

 

          De toda a experiência, dois grandes valores tiveram nítida influência na minha recuperação, a saber: a fé e a família.

            A fé lastreava a minha serenidade para tratar das diferentes circunstâncias de modo a perceber o que Deus queria.

            Aliás, foi a partir desta fé que intui durante a minha primeira internação que Deus não me queria ver tão cedo. Afirmo isto porque uma série de coincidências ocorreu de modo a que obtivesse um tratamento muito eficiente.

            A família “complementa” a fé. Afinal, a fé precisa de braços. E devo à família, a solidariedade nos momentos mais difíceis e particularmente à minha sogra que nos acompanhou, pois ficamos em sua casa durante o tratamento quimioterápico.

            O câncer nos leva a caminhar no escuro. As apreensões, os temores quanto as incertezas de como poderia se comportar o tumor no corpo nos deixa uma série de indagações, e isto a medicina não trata. Um médico trata o doente na sua metade, a outra, que diz respeito ao estado de espírito, e que é tão importante quanto, é pouco considerado.

            Felizmente, pude contar com as visitas semanais de um sacerdote e de um amigo do OPUS DEI, além de ter a comunhão eucarística através de meu concunhado.

            Eram auxílios poderosos, como soerguiam a alma e propiciavam um discernimento nos momentos mais duros.

            “... Não vem de nós, vem de seu favor ...”