Para pensar nº 1

 

Deus existe ou não existe. A que resposta nos inclinaremos ? A razão nada pode decidir a respeito. Há um caos infinito que nos separa. Um jogo está sendo jogado a tal infinita distância: sairá cara ou coroa. Em qual apostareis ? A razão nada diz; pela razão nenhuma das duas soluções pode ser defendida.

 

Não censureis, pois, como equivocados àqueles que realizaram sua escola; porque vós não sabeis nada. “Não; porém eu os censuro não pelo que escolheram, mas por terem feito uma escolha; porque, embora tanto o que diz cara como o que diz coroa estejam em erro equivalente, os dois estão em erro: o razoável é não apostar.”

“Sim, porém é preciso apostar: isto não é voluntário; e estais envolvido; não apostar que há Deus é apostar que não há Deus. Que partido tomareis, pois ? ( ... )

Pesemos o lucro e a perda tomando coroa, quer dizer, apostando que Deus existe. Estimemos os dois casos possíveis; se ganhardes, ganhareis tudo; se perderdes, não perdereis nada.”

 

O argumento é muito mais complexo, porque Pascal joga com o cálculo de probabilidades, que eles tão bem conhecia como matemático que era. Uma versão mais simples foi exposta, às vezes, da seguinte forma:

 

-         se aposto que Deus existe e existe, ganho tudo;

-         se aposto que Deus existe e não existe, não perco nada;

-         se aposto que Deus não existe e não existe; não perco nada;

-         se aposto que Deus não existe e existe, perco tudo.

 

Se aposta para ganhar, não para perder. Se é possível ganhar tudo, vale a pena apostar em Deus.

 

 

( trecho colhido no livro História básica da filosofia de Rafael Gómez Pérez, São Paulo: Ed. Nerman, 1988, pp. 167-168 )

 

 

 

 

Para pensar nº 2

 

 

 

Pode-se provar a existência de Deus, por cinco vias.

            A primeira, e a mais clara, parte do movimento. Nossos sentidos comuns atestam, com toda a certeza, que neste mundo algumas coisas se movem. Ora, tudo o que se move é movido por outro. Nada se move que não esteja em potência em relação ao termo de seu movimento; ao contrário, o que move o faz enquanto se encontra em ato. Mover nada mais é, portanto, do que levar algo da potência ao ato, e nada pode ser levado ao ato senão por um ente em ato. Como algo quente em ato, por exemplo o fogo, torna a madeira que está em potência para o calor, quente em ato, e assim a move e altera. Ora, não é possível que o mesmo ser, considerado sob o mesmo aspecto, esteja simultaneamente em ato e em potência, a não ser sob aspectos diversos: por exemplo, o que está quente em ato não pode estar simultaneamente quente em potência, mas está frio em potência. É impossível que sob o mesmo aspecto e do mesmo modo algo seja motor e movido, ou que mova a si próprio. É preciso que tudo o que se move seja movido por outro. Assim, se o que move é também movido, o é necessariamente por outro, e este por outro ainda. Ora, não se pode continuar até o infinito, pois neste caso não haveria um primeiro motor, por conseguinte, tampouco outros motores, pois os motores segundos só se movem pela moção do primeiro motor, como o bastão, que só se move movido pela mão. É então necessário chegar a um primeiro motor, não movido por nenhum outro, e um tal ser, todos entendem: é Deus.

 

            A segunda via parte da razão de causa eficiente. Encontramos nas realidades sensíveis a existência de uma ordem entre as causas eficientes; mas não se encontra, nem é possível, algo que seja a causa eficiente de si próprio, porque desse modo seria anterior a si próprio; o que é impossível. Ora, tampouco é possível, entre as causas eficientes, continuar até o infinito, porque entre todas as causas eficientes ordenadas, a primeira é a causa das intermediárias e as intermediárias são a causa da última, sejam elas numerosas ou apenas uma. Por outro lado, supressa a causa, suprime-se também o efeito. Portanto, se não existisse a primeira entre as causas eficientes, não haveria a última nem a intermediária. Mas se tivéssemos de continuar até o infinito na série das causas eficientes, não haveria causa primeira; assim sendo, não haveria efeito último, nem causa eficiente intermediária, o que evidentemente é falso. Logo, é necessário afirmar uma causa eficiente primeira, a que todos chamam Deus.

 

            A terceira via é tomada do possível e do necessário. Ei-la. Encontramos, entre as coisas, as que podem ser ou não ser, uma vez que algumas se encontram que nascem e perecem. Conseqüentemente, podem ser e não ser. Mas é impossível ser para sempre o que é de tal natureza, pois o que pode não ser não é em algum momento. Se tudo pode não ser, houve um momento em que nada havia. Ora, se isso é verdadeiro, ainda agora nada existiria; pois o que não é só passa a ser por intermediário de algo que já é . Por conseguinte, se não houve ente algum, foi impossível que algo começasse a ser; logo, hoje, nada existiria: o que é falso. Assim, nem todos os entes são possíveis, mas é preciso que algo seja necessário entre as coisas. Ora, tudo o que é necessário tem, ou não, a causa de sua necessidade de um outro. Aqui também não é possível continuar até o infinito na série das coisas necessárias que têm uma causa da própria necessidade, assim como entre as causas eficientes, como se provou. Portanto, é necessário afirmar a existência de algo necessário por si mesmo, que não encontra alhures a causa de sua necessidade, mas que é causa da necessidade para os outros: o que todos chamam Deus.

 

            A quarta via se toma dos graus que se encontram nas coisas. Encontra-se nas coisas algo mais ou menos bom, mais ou menos verdadeiro, mais ou menos nobre etc. Ora, mais e menos se dizem de coisas diversas conforme elas se aproximam diferentemente daquilo que é em si o máximo. Assim, mais quente é o que mas se aproxima do que é sumamente quente. Existe em grau supremo algo verdadeiro, bom, nobre e, conseqüentemente o ente em grau supremo, pois, como se mostra no livro II da Metafísica , o que é em sumo grau verdadeiro, é ente em sumo grau. Por outro lado, o que se encontra no mais alto grau em determinado gênero é causa de tudo que é desse gênero: assim o fogo, que é quente, no mais alto grau, é causa do calor de todo e qualquer corpo aquecido, como é explicado no mesmo livro. Existe então algo que é, para todos os outros entes, causa de ser, de bondade e de toda a perfeição: nós o chamamos Deus.

 

            A quinta via é tomada do governo das coisas. Com efeito, vemos que algumas coisas que carecem de conhecimento, como os corpos físicos, agem em vista de um fim, o que se manifesta pelo fato de que, sempre ou na maioria das vezes, agem da mesma maneira, a fim de alcançarem o que é ótimo. Fica claro que não é por acaso, mas em virtude de uma intenção, que alcançam o fim. Ora, aquilo que não tem conhecimento não tende a um fim, a não ser dirigido por algo que conhece e que é inteligente, como a flecha pelo arqueiro. Logo, existe algo inteligente pelo qual todas as coisas naturais são ordenadas ao fim, e a isso nós chamamos Deus.

             

 

( trecho colhido no livro Suma Teológica de Santo Tomás de Aquino. In questão 2, artigo 3.São Paulo: Ed. Loyola, vol. 1 ( parte I – questões 1-43 ),  2001. )

 

 

 

 

 

Para pensar nº 3

 

 

87. O aparecimento do problema de Deus

 

            Em outra ocasião[1] me ocupei detidamente da forma concreta que o problema da Divindade tornou na filosofia dos dois últimos séculos, principalmente nestes decênios próximos, e remeto a esse trabalho o leitor que deseje precisões sobre o tema. Só me interessa conseguir aqui um contacto vivo com o problema, bem como assinalar o ponto em que ele deve ser formulado, tomando para isso alguns aspectos do estudo citado.

            “O problema de Deus – escrevi eu então – não é formulado na história da filosofia de um modo totalmente unívoco, porque Deus é um objeto de experiência. Não somente variam as soluções e a formulação do problema, como também, antes de tudo, o próprio objeto é problemático, e portanto, o próprio problema. Isto não se dá com as demais questões da filosofia. O problema do ser tem, pelo menos, uma univocidade que é a referência às próprias coisas que estão aí, diante de mim. Outro tanto acontece com o problema do conhecimento, no qual se pode fazer apelo à realidade que é o conhecimento. Deus, pelo contrário, é inicialmente uma idéia minha, e a maior parte da dialética em torno do problema de Deus consiste no propósito de nos convencer de que Deus não é só uma idéia minha. O problema aparece pois, em primeiro lugar, como o  da existência de Deus; é esta uma característica peculiar que situa o tema de Deus numa nova dimensão na filosofia.

            “Não obstante, há outras questões em que também se trata da existência. Diz-se por exemplo que o ceticismo nega a possibilidade do conhecimento. Mas não é o mesmo, porque a rigor o que o ceticismo nega é que o conhecimento seja verdadeiro e não a existência do conhecimento como fenômeno real; ainda melhor, apontando uma realidade de índole psicológica ou lógica – indiferentemente -, nega sua pretensão de verdade e portanto a desqualifica, mas só depois de afirmá-la como existente.

            “Há outro problema que, à primeira vista, apresenta maior analogia: a questão da realidade do mundo exterior. O idealismo, numa certa medida, e sobretudo o solipsismo como o via Berkeley, parecem negar a existência desse mundo. Mas também não se trata da mesma coisa, porque aquele que nega a realidade do mundo exterior nega uma realidade que tem diante de si e a qual se refere diretamente; o que faz é afastar ou repelir aquilo que lhe é presente, e em lugar de dizer “não há mundo exterior”, afirma: “isso que há aí não é rigorosamente um mundo”. Nega-lhe, pois, o caráter de realidade independente, mas o ponto de partida é por si mesmo algo negado. 

            O ateu, pelo contrário, não nega a divindade de um ente com o qual se encontra, mas simplesmente diz que não há um ente que não encontra diante de si. Sua negação não se refere ao caráter do ente em questão, a seu tipo de realidade, mas à própria existência desse ente. A afirmação ou a negação acerca de Deus são, portanto, incomparáveis com a afirmação ou a negação em qualquer outro problema de filosofia; têm uma radicalidade muito maior, que lhes dá um sentido totalmente diverso.

            “A formulação do problema de Deus é portanto, antes de tudo, o esforço por reivindicar a existência de um objeto que não nos é dado, sem mais, imediatamente. As coisas estão diante de nós e são o ponto de partida para que se pergunte por elas; no caso de Deus, o ponto de partida é uma idéia que o homem tem e à qual pode corresponder ou não uma realidade. Esse é o problema. Por conseguinte, nos outros casos o questionável é o ser do objeto, mas este já é possuído; no caso de Deus, o problemático é o próprio objeto, e é necessário conquistá-lo previamente”.

            Mas aqui começam a surgir as dificuldades. Em primeiro lugar, deve-se perguntar por algo mais profundo que as características do problema de Deus, isto é, por que é ele um problema. Vimos no começo deste livro que um problema não é uma simples ignorância ou incompatibilidade; alguma coisa é problemática quando necessito saber a que me ater em relação a ela. Tudo o que encontro à minha volta não constitui forçosamente um problema para mim, mas só aqueles elementos a respeito dos quais tenho que estar esclarecido para me dar conta de minha situação e nela poder fazer minha vida. No caso de Deus, nem sequer o encontro em minha circunstância: só acho uma idéia. E normalmente, o fato de que uma idéia surja em minha mente, não me leva, forçosamente, a tê-la como questão, menos ainda transforma em problema a realidade a que essa idéia se refere. Por que, então, a presença da idéia de Deus cria um âmbito de problematicidade e obriga a tomar posição em relação a essa realidade por ela aludida, e que de modo algum me é presente ?

            Isto, por sua vez, implica duas questões diferentes: uma que se refere à índole dessa realidade, cuja simples conjectura irrompe como um elemento novo na situação em que me acho, e me obriga a incluí-la nesta ou excluí-la da mesma, isto é, a altera desde logo; a outra, concerne à própria idéia de Deus, como tal idéia, isto é, a seu modo efetivo de presença em minha vida.

            Com efeito, víramos que minha vida me é dada mas que não me é dada feita e sim como quefazer. Para viver, tenho que decidir o que vou fazer a cada momento, e esta decisão só pode ser tomada em vista da totalidade da situação em que me acho. Essa situação está definida, inicialmente, por minha coexistência com as coisas; em minha circunstância ou mundo irrompem continuamente novos ingredientes, internos a ele, e que são por mim interpretados mediante o apelo a esse mundo em que já estou e que é anterior a toda coisa que eu possa encontrar nele – por isso é um erro, inclusive descritivo, considerar o mundo como mero conjunto, agregado ou soma de coisas -.Ora, essa vida na qual estou e que – repito – me é dada, tem que ser aceita  por mim, dele tenho que tomar posse , tenho que fazê-la minha. Poder-se-ia, sem dúvida, pensar a possibilidade oposta; mas o grave é que não posso não aceitar, sem mais, a vida; tenho que a repelir, isto é, tenho que fazer alguma coisa também para não aceitar a vida, afastá-la ou, se se prefere, desligar-me dela. Isto dá sua exata significância à expressão antes escrita: minha vida me é dada e me é dada como quefazer. Não se reduz a um mero factum – ainda que seja desde logo um factum -, porque não é alguma coisa feia, nem sequer como ponto de partida, mas constitutivamente por fazer : a vida é alguma coisa que se deve tomar ou deixar, tomar de um modo ou de outro, e envolve a radice um fazer, na forma concreta do “deve-se”; é portanto um fazer imposto ou melhor, proposto, porque se por um lado me vejo forçado a  fazer , por outro lado tenho que escolher o que fazer. E antes de tudo, aceitar a vida ou renunciá-la; mas como só se pode renunciar àquilo que é próprio, para renunciar à vida do mesmo modo que para aceitá-la, tenho que a fazer minha. A forçosidade do quefazer é portanto liberdade, constitutivamente e de um modo inexorável.

            Partindo desta outra perspectiva, percebe-se que é preciso “assumir” a vida em sua totalidade, tomá-la como realidade global, prévia a suas formas e conteúdos particulares. Ora, a vida como totalidade põe a descoberto seu horizonte, denuncia sua orla de latência e remete forçosamente a seu fundamento – entenda-se bem, positivo ou negativo, a sua fundamentalidade ou a sua falta de fundamentação -. De fato, viver é já se ter decidido num ou noutro sentido, embora não se “saiba” que se decidiu ou não seja conhecida esta decisão.

            Pois bem, Deus é o nome de uma interpretação radical da realidade, dessa interpretação em que consiste essa decisão obrigatória que tomamos livremente – portanto, tomamos – ao viver. Por isso, no momento em que se pronuncia esse nome, “não em vão”, no momento em que surge em nossa vida a idéia de Deus, aparece inexoravelmente o problema da realidade de Deus, e com ele o problema da realidade sem mais. A idéia de Deus põe a descoberto esse apelo necessário ao fundamento de minha vida e essa decisão a partir da qual já estava vivendo, e torna assim problemática a situação total em que me acho. Neste momento preciso conhecer qual é minha decisão; porém, como a vida não está feita mas sempre se fazendo, não se trata tanto de saber o que decidi antes como de decidir agora e em cada momento: por isso Deus se torna problema  para mim, alguma coisa que está lançada ou posta diante de mim, e da qual tenho que dar razão para continuar vivendo. Esta é a raiz de se propor o problema filosófico de Deus, em cujo problematismo já se vivia desde o início. E por esta razão o problema da Divindidade não é inventado, formulado ou construído, mas sim descoberto.

            Mas aqui não se esgota a questão. Vimos o que acontece quando a idéia de Deus irrompe em minha vida; agora urge perguntar, por sua vez, por essa idéia. Onde a encontamos ? Como aparece em minha vida ? Qual a sua função na mesma ? Não se trata aqui das possibilidades de acesso intelectual a essa idéia, e sim do âmbito ou dimensão da vida humana em que a encontramos efetivamente, e que é, evidentemente, a religião. Com efeito, mesmo que possa ter lugar um trato com Deus que não seja religioso – isto não se deve esquecer -, é sempre alguma coisa derivada, uma transferência a um âmbito diverso daquele que foi descoberto em primeiro lugar e vivido religiosamente. Ora, num sentido amplíssimo, religião é aquela possibilidade – melhor, forçosidade – em o homem toma “em peso” sua vida inteira, por assim dizer, e é remetido a seu horizonte de latências ou ultimidades, e com isso a seu último fundamento. Por isso, este sentido de religião é tão amplo que, juntamente com a religião positiva , inclui toda tomada de posição a respeito destas ultimidades, e entre essas possibilidades, a própria irreligião.[2]

            E a filosofia, na medida em que pretende alcançar uma verdade radical, em que necessita dar a razão dessa realidade radical que é nossa vida, é remetida inexoravelmente aos últimos planos de seu horizonte e ao exame da totalidade de sua possibilidade de transcendência; em suma, ao problema de Deus. A filosofia tem que indagar acerca da possibilidade de que eu descubra, radicada enquanto realidade, na realidade radical que é minha vida, outra realidade diversa dela mesma, superior a ela e, em suma, seu fundamento. Mas a magnitude e radicalidade do problema exigem o máximo cuidado na sua formulação filosófica e não toleram nenhum gênero de precipitação. Se a vida é essencialmente urgência e pressa, a filosofia, que deve dar a razão de cada um de seus passos, não admite outra marcha que a de sua evidência e justificação; por isso já se disse que filosofar é não viver.

 

( Trecho da obra Introdução à filosofia de Julián Marías, trad. Diva Ribeiro de Toledo Piza, 2ª edição revista. São Paulo: Ed. Livraria Duas Cidades, 1966, pp. 358-362 )

 

 

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[1] “El problema de Dios em la filosofia de nuestro tiempo” ( em San Anselmo y el insensato, págs. 69-121 ).

[2] Para ulteriores detalhes, remeto a meu estudo citado no começo deste capítulo, onde me refiro longamente a uma esplendido ensaio de meu mestre Zubiri sobre o problema de Deus e o conceito de religação.