Revista geo-paisagem ( on line )

Vol. 1, número 2, 2002

Julho/dezembro de 2002

ISSN Nº 1677 – 650 X

 

 

Onde nasceu a cidade do Rio de Janeiro ?

 ( um pouco da história do Morro do Castelo )

 

 Paulo Cezar de Barros[1]

Resumo

 

O trabalho desenvolve uma análise sobre a origem da cidade do Rio de Janeiro. A partir de diferentes fontes, entrevistas e fotografias, o autor pode trazer uma valiosa contribuição ao tema.

 

Palavras-chaves : Rio de Janeiro, origem, Morro do Castelo

 

 

Abstract

 

The papper aim to understand the beginning of the Rio de Janeiro City. By differents approachs, interviews, fotographs, the author gives an important contribution   about the matter.

 

Keywords: Rio de Janeiro, beginning. Morro do Castelo

 


Introdução

 

 

“Os morros têm um recorte particular no horizonte do Rio de Janeiro.  Entre o mar e as montanhas, permeando charcos e lagoas, sua importância para a vida e a constituição da cidade transcende sua mera conformação geográfica”.

(Márcia Frota Sigaud)

 

 

            Onde nasceu a cidade do Rio de Janeiro?  Por que o Rio de Janeiro já nasceu com status de cidade?  Por que o primeiro núcleo urbano se estabeleceu num morro?  Por que esse núcleo foi arrasado?  Será que o carioca, até mesmo o mais apaixonado pelo Rio, conhece e valoriza a história da sua cidade?

                        Este trabalho pretende levar à tona um tema para reflexão, a saber: a memória da cidade do Rio de Janeiro no que concerne ao seu primeiro núcleo urbano, o Morro do Castelo e a sua evolução.  Berço da cidade, o Morro foi escolhido por Mém de Sá em 1567 para abrigar os cento e vinte portugueses que haviam participado da expulsão dos franceses calvinistas comandados por Villegaignon que aqui fundaram a França Antártida na Ilha de Seregipe, hoje Ilha de Villegaignon e onde está localizada a Escola Naval.

                        Derrotada a aliança franco-tamoia, passou-se então a fase de conquista do território.  Os primeiros moradores começaram a abandonar a praia entre o Morro Cara de Cão e o Pão de Açúcar, local de fundação da cidade, e ocuparam o ponto mais estratégico em torno da Baía: uma elevação encravada na planície encharcada, denominada inicialmente de Morro de São Januário. Após sucessivas denominações: Descanso, Alto da Sé, Alto de São Sebastião, o Morro passou a ser chamado de Castelo.  Assim nasceu a nossa cidade, delimitada e espremida em um morro com feições quase insular.

                        Este trabalho tem como tema geral a evolução urbana do Rio de Janeiro. O estudo da evolução urbana é analisado por geógrafos, historiadores, antropólogos, arquitetos, urbanistas, técnicos do patrimônio cultural, economistas e sociólogos.  Esse caráter transdisciplinar fomenta debates a partir de inúmeras abordagens, enriquecendo e motivando ainda mais o estudo sobre a cidade e meios de preservar o seu passado.

            Neste contexto, a geografia além de estudar a organização das cidades através dos agentes sociais produtores do espaço urbano, pode desempenhar um papel importante no resgate e na valorização do passado das cidades brasileiras.

            Ao iniciarmos o estudo desse tema, percebemos que poucas cidades no mundo tiveram a sua paisagem natural tão modificada como a do Rio de Janeiro. O dissecamento de lagoas, a drenagem de pântanos e mangues, os aterros sobre o mar, a construção de túneis, o desmonte de morros etc. mostram como a segunda natureza desta cidade foi sendo lentamente construída e modificada a partir de uma árdua intervenção humana.

            Denominado inicialmente de Morro do Descanso devido a árdua conquista que os portugueses tiveram para ocupá-lo, essa elevação fazia parte de um conjunto de vários morros cristalinos (S. Bento, Providência, Senado, Conceição e S. Antônio) que estavam encravados na planície encharcada e isolados dos maciços litorâneos.  Composto por rochas gnáissicas bastante desgastadas pelo intemperismo químico, o Castelo ocupava uma área de cento e oitenta e quatro mil metros quadrados.  Sua altitude era de 63 metros, e seus limites eram as atuais Avenida Rio Branco (antiga Avenida Central), ruas Santa Luzia, Misericórdia e São José.

            Em 1921, o então Prefeito do Distrito Federal, Carlos Sampaio, decretou o fim do Morro. O Castelo não resistiu à modernização do centro da cidade, pois era visto como o símbolo degradado do condenado passado colonial português.

            Os discursos higienista e estético que legitimaram as reformas de Passos e Sampaio transformaram as áreas centrais através de várias “cirurgias” urbanas, onde se concentravam as camadas populares da cidade.  Entretanto, para os trabalhadores, interessava residir no centro pois era ali que se concentrava a oferta de emprego.  Além disso, o custo e precariedade dos sistemas de transportes, contribuíam para a sua resistência em permanecer na área central.

            Higienizar e modernizar a cidade significavam sobretudo, eliminar os lugares infectos e sórdidos, o desmazelo, a imundície e as residências coletivas (cortiços e cabeças de porco) em que habitava a maioria da população.

            A “modernização destruidora” do Estado visava eliminar não só a cidade colonial marcada por ruas estreitas e sinuosas, como também objetivava romper com os valores culturais relacionados ao período imperial, valorizando a inserção cultural e econômica européias, principalmente pela absorção da visão do mundo francês.  Construir assim um novo centro mais moderno, significaria a construção simbólica de um novo país, instaurado pela ordem Republicana.

            Entretanto, as ações da República orientadas pelo ideário progressista não atenderam ao bem estar geral da sociedade. Assim, as classes populares foram as mais afetadas com as renovações urbanas do início do século XX.  Com o arrasamento do Castelo e do bairro da Misericórdia, localizado no sopé do morro, desapareceram da área central da cidade mais duas áreas residenciais pobres que haviam resistido à reforma Passos. Somente no Castelo, residiam aproximadamente cinco mil pessoas e, especialmente para elas, o desmonte do morro produziu um impacto extraordinário, forçando a mudança de residência.

            As conseqüências sócio-espaciais do arrasamento do Morro do Castelo foram pouco estudadas pelos geógrafos.  Neste sentido, acreditamos que este trabalho possa ser uma pequena mas importante contribuição para resgatar a memória e a identidade da cidade do Rio de Janeiro, pois, segundo Núbia Melhen Santos (2000), não podemos esquecer o Morro do Castelo sem antes conhecê-lo.

 

 

O INÍCIO DA OCUPAÇÃO

 

“Escolhi hum sítio que parecia mais conveniente para hedificar nelle a cidade de São Sebastião o qual sítio hera de um grande mato espeço cheo de muitas arvores grossas em que se levou asaz de trabalho em as cortar e alimpar o dito sítio e hedificar huma cidade grande serquada de muro por sima com muitos baluartes e fortes cheo de artelharia, e fiz a igreja dos padres de jhesus onde agora residem telhada e bem consertada

(Mem de Sá)

 

                        Para iniciar a análise da história oficial do Morro do Castelo, escolhemos a descrição de Mem de Sá sobre a Colina que havia tomado para abrigar o primeiro núcleo urbano do Rio de Janeiro, publicada no Jornal do Brasil de 20 de janeiro de 1965. O sítio mais conveniente, segundo Mem de Sá, deveria estar em uma elevação, pois era naquele momento, o ponto mais salubre e de melhor observação para a defesa da recém-fundada cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.

            Desta forma, a história da ocupação do Morro do Castelo está diretamente associada à defesa do território português contra as invasões francesas no séc. XVI. Antes da ocupação desta Colina, os cento e vinte portugueses, sob comando de Estácio de Sá, construíram um povoado localizado na várzea entre os morros Cara de Cão (hoje S. João) e Pão de Açúcar. A Coroa Portuguesa se sentido ameaçada pela presença dos franceses na Baía de Guanabara, apressou a fundação da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro em 1° de março de 1565, cujo nome foi uma homenagem ao Rei de Portugal, D. Sebastião. Embora a povoação de Vila Velha fosse apenas um precário acampamento militar, o Rio de Janeiro já nasceu como cidade, não recebendo anteriormente a denominação de povoado e vila.

            Portanto, o sítio original da fundação da cidade foi escolhido claramente por motivos militares, ou seja, defender o território como já citado. Acontece que este ficou pequeno para abrigar a população[2]. Após a morte de Estácio de Sá e com a derrota dos franceses, Mem de Sá resolveu transferir a povoação mais para o interior da baía em 1567. Diante da função eminentemente defensiva e de acordo com a própria tradição portuguesa, foi instalado um sítio em acrópole, ou seja, em uma elevação que favorecesse a vigília e a defesa[3].

            Foi escolhido o morro de São Januário, depois chamado de Descanso e Castelo, nome dado devido à fortificação aí construída, que vista de baixo se assemelhava a um castelo medieval[4].

                        É importante frisar que a escolha do sítio inicial na planície para a fundação da cidade, deveu-se à ocupação dos franceses no interior da baía. O Castelo poderia ter sido esse sítio inicial, mas a presença dos franceses na Ilha de Seregipe, atual Villegaignon, impedia que os portugueses ocupassem logo essa elevação para defender o território.

                        Desta forma, percebemos que a geografia do Rio de Janeiro contribuiu para a função defensiva do território. Com a boca estreita (1.600 m) e elevações próximas (maciços litorâneos), além da existência de várias enseadas gerando excelentes ancoradouros, a Baía de Guanabara é considerada por muitos autores como uma fortificação natural.

                        A ameaça representada pela aliança entre franceses calvinistas e índios Tamoios na Guanabara, foi fundamental para a fundação da cidade do Rio de Janeiro. Nesse contexto, o Morro do Castelo representava um ótimo sítio defensivo, um posto de observação privilegiado que permitia guardar a Guanabara contra novas tentativas de fixação dos inimigos franceses e também contra a ameaça dos Tamoios, índios nada simpáticos aos portugueses e que tinham medo das colinas, associando-as a coisas demoníacas[5].

            Delgado de Carvalho (1988), enfatiza que o fator agrícola também influenciou na ocupação inicial das encostas e várzeas orientadas para leste, ou seja, voltadas para o sol nascente. Esse fator foi importante para o desenvolvimento das lavouras e a conseqüente estabilização e extensão da posse primitiva. Assim, as planícies entre os morros foram durante muito tempo, segundo o autor, o celeiro do núcleo de povoamento.

            Logo no primeiro ano de ocupação, o Morro ganhava suas primeiras construções: o Forte de São Januário rebatizado mais tarde de São Sebastião. Localizado na parte posterior da colina e feito como as demais edificações, de pedra e óleo de baleia, as paredes internas chegavam a ter um metro de espessura e sua aparência era a de um castelo. Foram construídos fossos, muros e baluartes (muralhas), a igreja e o colégio dos jesuítas, armazéns, casas para os primeiros moradores, a Casa da Câmara, a Cadeia e a Igreja de São Sebastião, o primeiro templo religioso do Rio, que se assemelhava a uma fortaleza[6]. Para a defesa, foi construído um conjunto de três fortes: o Baluarte da Sé e a Fortaleza de São Sebastião, localizados no morro, e a Bateria de Santiago, na ponta da Piaçava. Essa, apontava para o mar, dividindo as praias de Santa Luzia e da Piaçava.

            Por que o Castelo foi o morro escolhido, já que existiam outras opções (Glória, São Bento, Pasmado e Viúva)?  Segundo Lysia Bernades (1995), atendendo a função escolhida, o Morro do Castelo era o que apresentava as melhores condições. Com uma altitude em torno de 60 metros, o Morro tinha um topo relativamente plano que permitia construções[7]. Todos os outros morros citados tinham vista para a baía de Guanabara, entretanto, o Castelo era o único que tinha uma vista ampla da sua entrada, além da proximidade com a ilha de Seregipe, onde os franceses haviam fundado a França Antártida. O Castelo estava cercado por pântanos e lagoas, sendo portanto, um promontório quase insular, dificultando o seu acesso, logo facilitando a sua defesa. Além disso, a vertente oeste, voltada para o interior, era protegida pela aldeia dos índios Temiminós, aliados dos portugueses e inimigos dos Tamoios. O Morro tinha uma fonte de água doce, que contribuiu para a escolha de Mem de Sá e, sua inclinação favorecia o escoamento dos detritos. Os portugueses jogavam o lixo nas ruas e as águas das chuvas tratava de levá-lo encosta abaixo.

                        Em 1567, ano da segunda fundação da cidade e posse definitiva do território através da ocupação do Castelo, o Rio tinha seiscentos moradores, todos morando no Morro[8]. A cidade era habitada por frades, monges, burocratas, soldados e índios. Segundo o Engenheiro José de Oliveira Reis (1986), o Castelo não era também um local apropriado para o desenvolvimento da cidade, embora fosse o mais estratégico dos morros.  A expansão da urbe foi feita pela conquista da planície embrejada a custa de inúmeros aterros.

 

EM DIREÇÃO À PLANÍCIE

 

“As primeiras cidades do Brasil começam pelos morros e só tarde descem à planície (...). Essa é a prudência dos fundadores no século XVI e no seguinte que foram uma luta pela posse da terra”.

(Márcia Frota Sigaud)

 

 

 

            A recém criada cidade não demorou a se espalhar em direção às planícies que circundavam a Colina. Destinada a ser marítima, a cidade não poderia ficar confinada no alto da colina (GERSON, 2000).

            No início do século XVII, a população do Rio de Janeiro era de 4 000 habitantes, entre índios, a maioria, portugueses e negros africanos escravizados e introduzidos para trabalhar nos engenhos de açúcar.

            Com o crescimento da economia e da atividade portuária, a cidade expandiu-se além do núcleo do Morro do Castelo. A “nobreza carioca” desceu pela ladeira da Misericórdia, único acesso ao Morro no início da sua ocupação[9]. Segundo NONATO (2000), não era fácil morar num morro que tinha apenas uma nascente de água e onde gêneros alimentícios e material de construção tinham que ser levados nas costas, a duras penas. Segundo Morales De Los Rios, o Morro do Castelo não tinha água potável, sendo uma das causas do seu abandono pela população[10].  Assim, percebemos que a pequena fonte de água que existia no Morro era insuficiente para abastecer a maioria dos moradores.

            Para FRIDMAN (1999), a descida do Morro do Castelo foi decorrente também de interesses dos principais produtores de riqueza: donos de engenho, produtores agrícolas, donos de armazéns e dos mercados.  Estes, preconizavam o crescimento da cidade na várzea a fim de expandirem os seus negócios.

            Do sopé do morro nasceram as primeiras ruas da cidade. A várzea era arenosa e em grande parte encharcada com lagoas e manguezais.  Trilhas foram construídas e posteriormente se transformaram em ruas.  Ruas como da Ajuda e Misericórdia contornavam a base para fugir dos terrenos úmidos. A rua Direita (atual 1° de Março), prolongamento da Misericórdia, ligava o Castelo ao Morro de São Bento.  Segundo GERSON (2000), com a exceção da rua Direita, as primeiras ruas não foram planejadas de “ponta a ponta”.  Desta forma, as casas eram construídas de acordo com as necessidades imediatas e só depois as ruas eram construídas, em expansão lenta, sem calçamento e nem sempre em linha reta[11].

            Se fizermos uma abordagem sobre os “donos” da nova cidade, verificamos que os grandes proprietários das terras do Rio de Janeiro eram, segundo FRIDMAN (1999), a coroa portuguesa, um pequeno número de nobres e as ordens religiosas.  Neste contexto, a cidade foi dividida entre várias ordens religiosas. Durante o período colonial, a organização espacial da cidade do Rio de Janeiro estava diretamente relacionada à presença e dominação dos religiosos.  Ainda segundo a autora, cada ordem, irmandade e confraria se apropriava de uma parcela do espaço urbano. Essa dominação tinha uma base econômica através da produção (agropastoril e serviços), além da acumulação de propriedades e uma base ideológica, através da influência da religião católica. Assim, a geopolítica colonial estava assentada numa relação Estado/Igreja.

 

                “Neste campo da relação Igreja/Estado, na falta de normas civis específicas para a conformação urbana, as leis eclesiásticas tornaram-se definidoras do estabelecimento das atividades e dos caminhos da expansão territorial.  O clero impôs normas expressas para os assentamentos dos edifícios e das propriedades sagradas.  O uso do solo carioca mostrou, portanto, um jogo de forças que teve expressão jurídica e política” (FRIDMAN, 1999, p. 13).

 

            Neste contexto, o Morro do Castelo pertencia aos Jesuítas. Esta ordem foi a maior proprietária de terras no Rio de Janeiro até sua expulsão em 1759. As demais ordens: franciscanos, carmelitas e beneditinos localizaram-se inicialmente na várzea. Em 1587, Manoel de Brito, Capitão de Infantaria e Fidalgo da Casa Real doou a sesmaria de São Bento para os monges beneditinos. Os franciscanos ficaram no sopé do Morro do Castelo até 1607, quando decidiram a transferência para o Morro de Santo Antônio reservado aos carmelitas, que chegados em 1590, não o aceitaram (FRIDMAN, 1999).

            É importante frisar que essas ordens religiosas se transformaram num importante agente produtor de espaço, induzindo os vetores da expansão urbana carioca. Segundo FRIDMAN (1999), os religiosos eram responsáveis pelos referenciais diários da população: habitação, saúde, produção de alimentos, educação, melhoramentos urbanos (construção de ruas, saneamento, abastecimento de água etc.). Mais adiante, analisaremos a expulsão dos Jesuítas e suas complicações no espaço do Morro do Castelo.

            Com a expansão urbana e a conseqüente descida para a várzea, o Morro do Castelo passou a ter três acessos: a Ladeira da Misericórdia, já citada, a Ladeira do Castelo ou do cotovelo e a Ladeira da Ajuda ou Poço do Porteiro (REIS, 1986). A primeira, ligava o Morro à praia do lado da Ponta do Calabouço. A segunda, isto é, a do Castelo, alcançava a planície pela Rua São José. A ladeira da Ajuda, ligava a parte oeste do Morro às proximidades da atual rua México[12]. Essa última foi destruída na primeira intervenção ocorrida em 1906 para a construção da Avenida Central.

            A cidade descia e com ela algumas instituições. A Casa da Câmara e Cadeia foram transferidas para a várzea, que também abrigava a Igreja do Carmo e o cemitério, localizado próximo à Santa Casa de Misericórdia. A Bateria de Santiago, na Ponta da Piaçava, foi ampliada a partir de 1603 e tornou-se a Fortaleza de Santiago, atual Museu Histórico Nacional. Em 1693, passou a abrigar uma prisão para escravos, que anteriormente ficava no prédio da Cadeia, localizada no alto do morro. Daí o nome “calabouço” por designar a fortaleza e a ponta onde se localizava.

            Além do Castelo e do São Bento, foram ocupados logo depois, os morros da Conceição e Santo Antônio, formando o famoso “quadrilátero”, onde esses morros delimitavam a área urbana até meados do século XIX[13]. A planície encharcada começava a ser aterrada. A lagoa da Carioca, que separava os Morros do Castelo e de Santo Antônio e a lagoa do Boqueirão, onde se localiza atualmente o Passeio Público, começaram a ser dissecadas. Percebemos, deste modo, que além da função defensiva, a ocupação inicial dos morros se deve também à própria insalubridade da planície. Os morros eram naquele momento, o melhor e o único local para a ocupação e o povoamento, já que as planícies que os circundavam eram praticamente embrejadas. Desta forma, apesar da questão estratégica Ter sido determinante, não podemos minimizar a questão sanitária para entendermos a ocupação do Morro do Castelo.

            Portanto, como já citado, no final do século XVI, com o rápido crescimento da cidade, a população começava a descer o Morro do Castelo. A partir do século XVII, a Colina passou a perder influência diante do comércio marítimo crescente, que transformou o porto e as imediações da atual praça XV em centro administrativo e econômico do Rio colonial.

            Desta forma, a mudança da função da cidade, de militar para portuária, corroborou para “descida” do Castelo. Além do tradicional quadrilátero, a cidade começava a mover os seus “tentáculos” em direção ao interior.  As principais edificações, como o Forte ou Castelo de São Sebastião, que batizara a colina, o Colégio dos Jesuítas, fundado por Anchieta e Nóbrega, e as casas dos primeiros colonizadores estavam em processo de deterioração; e as estreitas e tortuosas vielas do morro passaram a abrigar uma população menos favorecida que ficou fora da distribuição de sesmarias, principalmente pescadores.  A Igreja de São Sebastião, por exemplo, ficou praticamente esquecida pelo povo carioca.  A falta de fiéis, levou os padres a recrutar os escravos para assistir as missas. No século XVI, as mulheres só saiam de casa para ir à missa, e a movimentação no morro ficava por conta dos dias de procissão.

            Com o êxodo da elite rumo à planície, a decadência do Castelo tornou-se inevitável. No século XVII, o morro abrigava uma população marginal e, apesar de guardar relíquias históricas, era desprezado pela maioria dos cariocas.

            Com a exploração do ouro em Minas Gerais, a cidade do Rio de Janeiro passou a ganhar importância como o principal porto de embarque do metal para Portugal. A riqueza gerada atraiu duas expedições francesas, a de Duclerc em 1710, mal sucedida, e a de Duguay-Trouin, no ano seguinte, que saqueou a cidade e tornou urgente a revitalização dos fortes e a melhoria da função defensiva. Em 1762 foi construída a Casa do Trem, próximo à Fortaleza de Santiago, destinada à guarda do armamento (trem de artilharia) das tropas enviadas por Portugal. Posteriormente, foi construído junto à Casa do Trem, o Arsenal de Guerra, destinado à fabricação de munições e ao reparo de armas. Segundo KESSEL (2000), o entorno da área hoje ocupada pelo Museu Histórico Nacional passou a abrigar logradouros cuja toponímia evocava as funções bélicas e defensivas: os becos da Batalha, do Calabouço, do Quartel, do Trem e dos Tambores.

            Um capítulo marcante na história do Morro do Castelo foi, sem dúvida, a expulsão da Ordem dos Jesuítas durante o governo de Marques de Pombal, no século XVIII. Segundo o historiador Nireu Oliveira Cavalcanti[14], a expulsão dos jesuítas não pode ser justificada apenas pela ordem de Marques de Pombal, considerado um anti-clerical. Na verdade, a expulsão interessava à Igreja Católica, já que essa Ordem estava ficando muito rica e independente do Vaticano. A expulsão dos jesuítas do Morro do Castelo gerou muitas lendas na população. Tesouros teriam sido enterrados nos seus lendários subterrâneos durante o rápido despejo dessa Ordem. É interessante frisar que essa lenda foi absorvida inclusive pelas classes dirigentes, a ponto que as possíveis riquezas lá encontradas serviriam como garantia às empresas que estivessem a serviço do desmonte. Essa visão, aceita por grande parte da população, acabou contribuindo para legitimar o arrasamento.

            A expulsão dos jesuítas em 1759 culminou com confisco de seus bens, cujas terras agrícolas e urbanas passaram ao patrimônio do Estado ou foram vendidas em leilão (FRIDMAN, 1999). Em relação às propriedades jesuíticas no Morro do Castelo, segundo a autora, o Estado as doou à Santa Casa de Misericórdia.

            Mesmo com o abandono do Castelo, que aliás, ao nosso ver, é um termo muito forte, mas que é muito utilizado por vários autores que estudam a área, o Morro ainda possuiu por muito tempo, função estratégica. O telégrafo e o Observatório Astronômico são exemplos da refuncionalização do Castelo não só com fins científicos, mas também com fins militares. Do morro, por exemplo, se davam os avisos de incêndios na cidade, o que prova que o sítio urbano era muito pequeno. Além disso, a fortaleza de Santa Cruz, localizada na entrada da Baía, passava para o Castelo, através de sinalizações com bandeiras, o tipo e a nacionalidade do navio que estava entrando no porto. Da Colina, as informações eram passadas à sede do governo, na Praça XV.

            A transferência do Observatório Militar para a torre da igreja e parte do convento dos Jesuítas no século XIX gerou muitas controvérsias. A instalação do Observatório, segundo a visão de alguns militares, deveria ser feita no Morro da Conceição. A justificativa se devia à precária situação geológica do Morro do Castelo. A instabilidade do terreno aliada às enxurradas e desmoronamentos, ainda mais acelerados com o desmatamento, e a própria inadequação das instalações do edifício à sua nova função, dificultavam as pesquisas científicas[15].

                        Portanto, como nos lembra KESSEL (1997), o Morro do Castelo é parte inseparável da vida diária no Rio Imperial:

 

                        “Que horas são?, Qual é a nau que aponta no horizonte? Há incêndio? Vamos à missa? Procuremos uma rezadeira... Os laços se estreitam em 1862: em presença do Imperador D. Pedro II, exumam-se os restos de Estácio de Sá, enterrados desde 1583 na Igreja de S. Sebastião, que em virtude de um temporal havia sofrido sérios danos no ano anterior.  Os membros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro assistem à cerimônia, que marca a confirmação do liame entre a colônia, berço do Rio de Janeiro, e o túmulo de seu fundador.  Lá está também o padrão quinhentista de Pedra com as quinas portuguesas, marco da fundação da cidade.  Carregado de tradições, lugar de memória e devoção sacra, para onde a cada momento se voltam os olhos dos cariocas, como é possível que se trame a sua ablação? Mas assim é”[16]. (KESSEL, 1997, s/p).

 

            Esta citação confirma a nossa crítica à questão do “abandono” do Castelo”.  Mesmo abandonada pelas elites, a Colina ainda teve um importante papel na vida diária dos cariocas, mesmo após o êxodo do Morro pelas elites.

 

 

DA CONDENAÇÃO AO ARRASAMENTO: VENTILAR ERA PRECISO

 

 

            Desde o século XVIII, o Morro do Castelo foi alvo de inúmeros pareceres técnicos ligados aos campos da medicina e da engenharia. Segundo esses pareceres, o arrasamento dessa Colina era vital para a melhoria do clima e da circulação dos ventos na área central do Rio de Janeiro. O Morro contribuía segundo os técnicos, com a propagação das epidemias que assolavam os cariocas e amedrontavam os estrangeiros.

                        O médico José Maria Bontempo em sua Memória sobre algumas enfermidades do Rio de Janeiro (apud Nonato, 2000) aconselhava a demolição não só do Morro do Castelo, como também do Morro de Santo Antônio. Neste trabalho, Bontempo chegou a enfatizar que o administrador responsável pelos desmontes ficaria com o nome eternizado na história da cidade.

                        Dom José Joaquim da Cunha de Azeredo, bispo de Pernambuco e Procurador do Senado da Câmara em Lisboa, no Ensaio Econômico Sobre o Comércio de Portugal e suas Colônias (apud NONATO, 2000), enfatizou a importância do desmonte do Castelo, que impedia a circulação dos ventos vindos do mar, tão necessários na região tropical. Este, foi o primeiro estudo completo sobre a idéia de arrasar a colina histórica. Segundo Dom José, do desmonte se criaria uma “nova cidade” até a Ilha de Villegaignon, e o ouro extraído do subsolo, deixado pelos jesuítas, pagaria os proprietários dos imóveis desapropriados.

            O famoso episódio conhecido como “Águas do Monte”, de 1811, ou seja, a grande enxurrada que provocou desabamentos de encostas do morro, com numerosas vítimas, também concorreu para incentivar os defensores da idéia do desmonte.

            No século XIX, as várias tentativas para o seu arrasamento foram frustradas. A cidade se expandia e a colina agonizava, mas resistia. Para facilitar a comunicação entre Botafogo e Laranjeiras com a área portuária, foi alargada a estreita passagem entre a rua da Ajuda e a Misericórdia, em frente à Igreja de Santa Luzia. No início do século XX, a construção da Avenida Central rasgou o Centro do Rio. Foram feitos cortes no morro em 1904 para a abertura da Avenida Central, hoje Rio Branco, e para as construções da Biblioteca Nacional, do Museu Nacional de Belas Artes e do Supremo Tribunal Federal.

            A demolição veio com a administração do prefeito Carlos Sampaio. Assumindo em 1920, o engenheiro tinha como objetivo sanear a cidade e prepará-la para as comemorações do 1° Centenário de Independência do Brasil, realizando obras de saneamento e embelezamento que culminariam numa exposição internacional no local do arrasamento do Castelo.

            A Colina histórica era vista por Carlos Sampaio como um grande problema de razões ligadas à estética, higiene e a engenharia. O morro era comparado a um “quisto” ou uma “cárie” que precisava ser extraída para por fim às moléstias que infectavam a cidade. Era necessário, segundo o prefeito, ventilar a área central:

 

                “Com a forma de um rim, voltando sua convexidade para a única entrada da nossa imensa bahia e com sua maior dimensão normal á direção dos ventos reinantes, esse monte agravava por esse motivo inconvenientemente precedentemente indicado e produzia, por seu aspecto inesthético e asqueroso uma má impressão ao viajante, que, ao entrar na esplendida bahia do Rio de Janeiro, tinha a mesma sensação que se teria ao ver uma linda boca com o dente da frente cariado” (SAMPAIO, 1924, p. 4).

 

            Em seu livro: Memória Histórica: Obras da Prefeitura do Rio de Janeiro, Carlos Sampaio (1924), além de condenar o Castelo, visto como o morro mais nocivo à saúde do Rio de Janeiro, elaborou os pareceres técnico e financeiro que  justificavam a importância daquela obra. Algumas questões foram consideradas por ele como os “Problemas do Castelo”, a saber: o desmonte; o destino a ser dado às terras e ao novo local; o sistema de transporte a ser utilizado para o desmonte e a proteção do aterro contra as águas do mar. Veja que em nenhum momento do seu livro, o prefeito se preocupou em resolver a questão demográfica do morro. Afinal, para onde iria aquela população que residia no Castelo?  Segundo Sampaio, no seu livro, foram demolidos quatrocentos e sessenta prédios, cuja desapropriação ocorreu sem nenhuma reclamação.

            Em relação às terras originadas do desmonte, Sampaio, por questões financeiras, justificava o destino in loco, aterrando a orla até a ilha de Villegaignon e a praia adjacente, a enseada da Glória.

            Na época do desmonte, houve o seguinte questionamento: Por que não arrasar o Morro de Santo Antônio ao invés do Castelo? Era mais fácil tecnicamente e não criaria uma resistência maior em relação à opinião pública. Carlos Sampaio justificava pela importância da Colina Histórica. Para ele, qualquer prefeito poderia arrasar o Santo Antônio, mas o Castelo dificilmente um administrador teria essa coragem.  Além disso, com o desmonte, a prefeitura ganharia com a utilização da valiosa área a ser aplainada e criada e ainda, em suas próprias palavras: “Mostrar ao mundo civilizado que o brasileiro também sabe trabalhar...”.

            Quanto a vertente financeira do desmonte, Antonio Nonato em Era Uma Vez o Morro do Castelo (2000), enfatiza que não existe ainda uma pesquisa sobre o quanto se gastou na obra. Mas é certo que houve um grande endividamento do Estado. Vale lembrar que Carlos Sampaio foi acusado na época por corrupção, já que no final do século XIX possuía uma empresa de Engenharia que tinha a concessão do Estado para demolir o morro. Estudos mostravam que obras de embelezamento no morro custariam bem menos, cerca de um terço do valor gasto no desmonte.

            É importante frisar que a opinião pública e a imprensa ficaram divididas em relação ao projeto de desmonte. Segundo VELLOSO (1998), a imprensa favorável à demolição do Morro usava metáforas ao citar o Castelo.  Destacamos a da Revista Careta:

 

Se o trambolho do Castelo

Se projeta remover,

Afirmamos que é com certeza

Para o rei Alberto ver...[17]

 

            Por outro lado, existiam aqueles que se opunham à demolição. Dentro da imprensa carioca, destacou-se a campanha feita pelo Jornal do Brasil, que propôs um projeto de urbanização dos morros do Centro do Rio[18]. Dentre os intelectuais opositores, o paulista Monteiro Lobato escreveu numa crônica: “a colina seria a pérola maior do maravilhoso colar de pérolas carioca.” (apud VELLOSO, 1998, p. 32).  Para ele, o carioca acostumado com a beleza natural da cidade, não lhe dava o devido valor.

 

 

A IDEOLOGIA QUE ARRASAVA: ABAIXO PORTUGAL, VIVA A FRANÇA

           

            A idéia de uma cidade imunda, pobre, infecta de moléstias, de clima insalubre e repleta de analfabetos é analisada por muitos autores como uma visão preconceituosa e determinista. É lógico que existiam ambientes insalubres na cidade. Entretanto, a natureza dessa insalubridade era fundamentada em pareceres pouco críticos. Afinal, o Rio de Janeiro foi a segunda cidade do mundo a possuir esgoto sanitário e não podia-se dizer exatamente que as grandes cidades do mundo na época primassem pela higiene e limpeza.

            Segundo Jorge Luiz Barbosa (1992), as péssimas condições de vida da população pobre carioca corroborava para o avanço das doenças que assolavam a cidade (varíola, febre amarela, tuberculose etc.). Desta forma, a natureza dos ambientes malsãos na cidade do Rio de Janeiro não poderia ser analisada pelo determinismo do clima quente e úmido, ideologia que acabou legitimando o arrasamento da Colina. “Submetidos a viver na tênue fronteira entre a precariedade e a indigência, os trabalhadores da cidade do Rio de Janeiro lutavam diariamente contra a fome, contra a moléstia e contra a civilização” (BARBOSA, 1992, p. 327).

            Essa era a verdadeira natureza da crise ambiental por que passou a cidade. Não era o Castelo o responsável pelas moléstias e sim a pobreza e a exploração da classe trabalhadora.

            Além disso, a República, recém instaurada em 1889, precisava se legitimar no poder, atacando para isso, não só o período colonial português como também a própria identidade da cidade do Rio de Janeiro. Segundo o professor Carlos Lessa (2000), a República logo iniciou estudos da região central, reservada à nova capital: Parecia estar no subliminar da nascente República a sinalização de repúdio à cidade imperial; expressaria um certo desamor pelo Rio, considerado lugar contaminado por conotações coloniais e dinásticas (LESSA, 2000, p. 183).

            A ideologia destruidora dos resquícios da cidade colonial e atrasada, colocava o Morro do Castelo na beira da condenação, pois era essa colina, sem dúvida, o principal símbolo colonial português na cidade.

 

                “O novo regime teria que lidar, não só com a organização de uma nova vida social e política, mas também com a projeção de uma arquitetura simbólica do nacional, que marcasse a República com a verdadeira entidade representativa da sociedade como um todo” (MOTTA, 1992, p. 11).

 

            Para MOTTA (2001) a República não via com bons olhos o Rio de Janeiro.  A cidade era considerada agitada, politizada e cheia de símbolos coloniais:

 

                “a assuada da massa popular do Rio de Janeiro sempre assustou os governantes. A capital imperial foi freqüentemente marcada por manifestações de rua, seguidas de quebra-quebras de estabelecimentos comerciais, especialmente de portugueses...” (MOTTA, 2001, p. 50).

 

                        O Morro era a fronteira nítida entre a cidade “colonial e atrasada” e a cidade “européia, civilizada e moderna”. Muitos relatos da época enfatizam o contraste de paisagens. Há metros do Teatro Municipal, recém construído, de estilo francês, podia se ver uma paisagem bucólica na colina, onde pastavam cabras, além das galinhas e dos famosos varais de roupas, paisagem humana marcante do Morro do Castelo.

                        A reforma urbana promovida por Pereira Passos, ao remodelar o Rio Antigo, deixou o morro do Castelo fora do processo de modernização urbana. Tendo como referência o estilo de vida francês, o modelo parisiense foi utilizado para consolidar a passagem da cidade atrasada para a cidade moderna[19]. Além da remoção dos cortiços e a expulsão da população pobre do centro do Rio, o não tratamento paisagístico no Morro do Castelo gerou um forte contraste de paisagens, alimentando ainda mais o sentimento republicano de aversão ao estilo urbano português.

                        Segundo JESUS (2000), Passos não arrasou fisicamente a Colina, mas contribui para a sua condenação, pois consolidou na cidade uma atmosfera de apologia à modernidade, além de supervalorizar os terrenos vizinhos ao morro, fortalecendo ainda mais os discursos a favor da demolição. O centro da cidade foi, deste modo, a área onde Passos buscava a superação das feições coloniais da cidade velha, comparadas com a doença e o atraso.

            Para VELLOSO (1998), sempre que havia uma discussão sobre a modernização da cidade, os portugueses não eram poupados de comentários maldosos: “Lá vêm esses portugueses atrapalhando os nossos caminhos” (VELLOSO, 1998, p. 33). Não podemos esquecer, que nesse contexto, grande parte das propriedades do Rio de Janeiro e especialmente no Morro do Castelo pertencia aos portugueses[20]. Em suma, as campanhas republicanas preconceituosas contra o passado colonial português visavam “mudar a cara” do Brasil e o Morro do Castelo, nesse contexto, era o símbolo mais nítido do Português.

            JESUS (1998), nos lembra que o Morro do Castelo passou no final da sua história oficial, por um processo de turistificação.  No século XIX, a Sé era alvo de procissões no dia de São Sebastião.  Joaquim Manuel de Macedo em Um Passeio pela Cidade do Rio de Janeiro (1862), publicou uma espécie de guia turístico da cidade onde elege oito áreas de visitação na cidade. Há um destaque especial para o Morro do Castelo:

 

                “com efeito, o telégrafo do Castelo, com seu jardinzinho e seu pátio e sua fonte, e sobretudo, com a sua feliz situação, avassalando a cidade do Rio de Janeiro e a magnífica baía de Niterói, é um dos mais frequentados e estimados passeios da capital, principalmente aos domingos e feriados (...)” (MACEDO, 1991, p. 254).

 

            No referido trabalho, Macedo estabelece um roteiro histórico-cultural do Morro do Castelo, destacando as suas principais relíquias históricas: a Sé e o Complexo Jesuítico. Vejam como ele achava importante visitar a casa dos primeiros “donos” da cidade do Rio de Janeiro:

 

                “Subir o Morro do Castelo, percorrê-lo, estudar, embora muito rapidamente, a sua história e descer enfim desse velho e desprezado capitólio da cidade do Rio de Janeiro, sem ter parado, por alguns minutos ao menos, diante do antigo Colégio dos Jesuítas, fora ao mesmo que ir a Roma e não visitar o papa” (MACEDO, 1991, p. 214).

 

            Já no século XX, na Reforma Passos houve a descoberta dos lendários subterrâneos do Castelo, conforme a citação abaixo nos informa:

 

                “a turma de trabalhadores das obras da Avenida Central que, sob a direção do engenheiro Dr. Dutra de Carvalho Filho, procede à destruição do morro do Seminário, fez na madrugada de hoje, pouco antes de 1 hora, uma surpreendente descoberta.  Na fralda do morro, já cortado numa grande parte, apareceu sob a picareta, dos trabalhadores a boca de uma galeria... Vai se verificar, finalmente, que fundo de verdade tem a tradicional versão da existência de tesouros naquele morro.:” (Jornal do Commércio de 27/04/1905 apud BARRETO, 1997, p. I ).

 

            Segundo JESUS (1999), o governo deixou exposta para visitação pública uma pequena amostra do que seria supostamente a rede de galerias subterrâneas.  Por ser uma ordem rica, os jesuítas talvez tivessem guardado os seus tesouros nas galerias, gerando lendas e curiosidades entre a população carioca. Segundo BARRETO (1997), o Morro chegou a ter uma visitação diária em torno de três mil pessoas. Apesar dos tesouros históricos do Castelo, a turistificação não gerou forças para impedir o arrasamento da Colina.

            O arrasamento do morro do Castelo iniciou-se em novembro de 1920, com a instalação de uma máquina escavadora que foi utilizada na demolição do morro do Senado, na área que corresponde hoje a atual rua México (KESSEL, 2000).

            Segundo MOTTA (1992), os recursos que foram aplicados na demolição foram vultosos, necessitando a emissão de papel moeda e de empréstimos externos. O ritmo dos trabalhos era bastante lento no início do desmonte. Até dezembro de 1921, apenas 10% do morro havia sido removido. Entretanto, com a negociação de um novo empréstimo de 12 milhões de dólares, o equivalente a 93 600 mil contos e com a transferência das obras para a Kennedy & Co., o uso intensivo da força hidráulica acelerou o ritmo do desmonte. Por outro lado, os custos aumentavam proporcionalmente à aceleração do desmonte. Em suma, ao longo do período das obras de demolição, o ritmo com as técnicas empregadas variaram de acordo os fluxos de investimentos (MAIA, 1997).

            A Exposição do 1° Centenário de Independência dependia diretamente dos trabalhos da Prefeitura do Distrito Federal. Os pavilhões da Exposição seriam construídos em aterros provenientes do desmonte do Castelo. A Exposição foi um evento grandioso e buscou firmar uma determinada imagem de modernidade para o país, como podemos verificar nesta citação:

 

                “a exposição não teria somente o caráter de uma vitrine dupla, onde os visitantes do exterior conheceriam a riqueza e as potencialidades do país e onde os brasileiros teriam a oportunidade de tomar contato com as maravilhas do estrangeiro; o espaço tomado ao mar e ao Castelo deveria ser também um espelho, onde a cidade e a nação pudessem buscar a imagem que verdadeiramente queriam e deveriam projetar, a imagem do progresso, da civilização, da higiene e da beleza. Dia a dia, no movimentado ano de 1922, o Rio de Janeiro assistia ao espetáculo diário do passado representado pelo Castelo e se esvaindo em forma de lama pelas mangueiras hidráulicas, enquanto que sobre o aterro resultante tomavam forma os palácios e as avenidas (KESSEL, 2000, p. 61).

 

            A Exposição foi montada ao longo de dois eixos, entre o final da Avenida Rio Branco e a Praça XV, cujo vértice era a antiga Ponta do Calabouço, agora afastada do mar pelos sucessivos aterros.

            É importante destacar que o ano de 1922 foi crítico para o governo brasileiro, repleto de disputas e levantes militares. Assim, o governo de Epitácio Pessoa não poupou esforços e recursos para mostrar que o Brasil fazia parte do “mundo civilizado” durante a Exposição do Centenário.

            As obras do desmonte pararam durante a Exposição. O mandato de Carlos Sampaio finalizou a 15/11/22. Nos dois últimos meses o ritmo de demolição foi acelerado apesar das controvérsias sobre as tentativas de evitar o desaparecimento do Hospital São Zacharias e do Complexo Jesuítico. Carlos Sampaio frustrou os defensores dos valores históricos dizendo: “... Como se fosse possível arrasar o morro do Castelo sem demolir tudo o que se achava sobre ele...”.(SAMPAIO, 1928, p. 7, apud KESSEL, 2000, p. 62).

            O governo de Carlos Sampaio foi comparado muitas vezes com a administração de Pereira Passos, pois marcou para sempre a paisagem carioca. Entretanto, o arrasamento do Morro custou uma fortuna para a cidade. Somente com banqueiros americanos e holandeses, a prefeitura contraiu uma dívida externa próxima de 24 milhões de dólares. Assim, ao sair do governo, Carlos Sampaio deixou a prefeitura do Distrito Federal praticamente falida. E mais, o morro levaria anos até ser completamente destruído.

 

 

 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

 

            A cidade do Rio de Janeiro faz parte da nossa identidade. Sem a sua memória, sem os seus principais símbolos, perdemos nossas referências.  Por isso, é fundamental preservar a sua história.  Procuramos nesta pesquisa, estudar a evolução do Morro do Castelo, berço da nossa cidade, relacionando-a aos processos sociais no tempo e no espaço.

            Neste contexto, ao analisar a evolução do Morro do Castelo, foi necessário entender os processos sociais que lhe deram forma e função.  Se para Mem de Sá o Morro desempenhou uma função importantíssima na defesa e povoamento da cidade do Rio de Janeiro no século XVI, para Carlos Sampaio, o “demolidor” do Castelo, a Colina era um verdadeiro obstáculo não só à expansão urbana do século XX, mas também à expansão do capital.

            A importância história do Morro do Castelo não foi suficiente para se constituir num fator à sua preservação.  Para se tornar moderna, além da erradicação de cortiços e abertura de novas avenidas, a cidade do Rio de Janeiro viu o seu principal símbolo ser destruído.

            Desta forma, o berço da nossa cidade foi vítima da modernidade instaurada com a ordem republicana. Esta, não via com bons olhos a cidade do Rio de Janeiro, considerada anti-nacionalista, agitada, politizada e cheia de símbolos coloniais. 

            Esta aversão as formas e estruturas construídas durante a colonização portuguesa, ajuda-nos a entender um dos fatores que explica o arrasamento do Castelo.  Esta acrópole era o ícone maior da colonização lusitana em nossa cidade. Se não era possível, no primeiro momento, transferir a capital para o interior do Brasil, seria construída então, aqui mesmo, a nova capital.  Neste contexto, o Morro do Castelo não fazia parte deste projeto.

            A maior intervenção empreendida no tecido urbano da cidade do Rio de Janeiro, ao nosso ver, o arrasamento do Morro do Castelo refletiu os interesses e as necessidades da classe dominante e da expansão do capital. O deslocamento da população pobre e a valorização dos terrenos, vão ao encontro desses interesses. Os intelectuais, os engenheiros, os médicos e sanitaristas deram o respaldo científico que legitimou o desmonte, e a imprensa em grande parte, apoiou em prol da modernização e civilização da cidade.

            Assim, analisar o desmonte somente pelo prisma da higiene e da engenharia, é uma visão pouco crítica. É necessário entender os principais interesses de agentes de intervenção no espaço urbano, ou seja, a relação entre o capital e o Estado.

            O Morro do Castelo estava localizado numa das áreas mais valorizadas do Centro da cidade, por isso, se torna impossível analisar o desmonte da Colina sem tocar na questão da reprodução do capital imobiliário. Por trás das questões higiênicas, estéticas ou até mesmo preconceituosas contra o português, tínhamos principalmente, uma relação entre o Estado e o capital imobiliário.

           

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

 

1.1              – JORNAIS

 

Correio da Manhã, 1921 a 1924.

Jornal do Brasil, 1920, 1921 e 1923.

Jornal do Commércio, 1921.

 

1.2              – REVISTAS

 

Revista da Semana – 1921, 1935

Revista Kosmos – 1905

Revista de Domingo – Jornal do Brasil – 1994.

 

1.3 - PUBLICAÇÕES

 

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      IPLANRIO, Rio de Janeiro 1997.

 

BARBOSA, Jorge Luiz.  Olhos de Ver, Ouvidos de Ouvir: Os “Ambientes Malsãos”

     da Capital da República. In: Natureza e Sociedade no Rio de Janeiro. Prefeitura

     da Cidade do Rio de Janeiro, 1992.

 

BARREIROS, E. C.  Atlas da Evolução Urbana da Cidade do Rio de Janeiro. Ensaio

      – 1565 – 1965, Rio de Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1965.

 

BERNARDES, Lysia M. C.  Evolução da Paisagem Urbana do Rio de Janeiro até o

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     1996.

 

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      CPDOC, 1992.

 

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[1] Professor de 1º e 2 º graus com pós-graduação em Políticas Territoriais do Estado do Rio de Janeiro pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro ( UERJ ) . E-mail: geopaulo.barros@uol.com.br .

[2] Apesar de realizar muito bem a sua função defensiva, o sítio de fundação não era apropriado para o crescimento da cidade.  O local era ilhado, não tinha água potável, o acesso ao interior era difícil e era vulnerável aos ataques inimigos (REIS, 1986).

[3] Diferentemente dos espanhóis, que buscavam as mesetas e planícies para ocuparem um território, os portugueses buscavam sítios em elevação para a construção de suas cidades.  Esta estratégia era adotada também pelos romanos, visigodos e muçulmanos em Portugal (PEREIRA, 1988)

[4] Segundo o arquiteto Morales De Los Rios, a denominação Morro do Descanso surgiu na escritura da sesmaria (terras doadas pelo governador geral em nome da Coroa Portuguesa)doada pelo Governador Christovão de Barros à um dos conquistadores da cidade, Nuno Tavares.  Tal escritura é datada de 1573. (Jornal do Commércio, 10/11/1921).

[5] Caderno de Domingo, Jornal do Brasil, janeiro de 1994.

[6] Além da função religiosa, a igreja matriz também possuía função militar. Por estar localizada na parte mais alta da Colina, as duas torres eram usadas eventualmente para vigia da costa.

[7] Elevado sobre os terrenos pantanosos, o Morro do Castelo era um lugar mais salubre e fresco do que a planície encharcada.

[8] Revista de Domingo, Jornal do Brasil, Janeiro de 1994.

[9] Havia uma ladeira localizada na praia da Piaçava, junto ao porto, que levava ao alto do morro.  Por ser muito íngreme, logo foi abandonada e substituída pela Ladeira da Misericórdia.

[10] Jornal do Commércio, 10/11/1921.

[11] A rua da Direita era um ponto estratégico pois ligava o Castelo ao morro onde os beneditinos haviam se instalado.

[12] A denominação Ladeira do Poço do Porteiro surgiu com a construção de um poço no terreno do porteiro da Câmara, Mestre Vasco.

[13] Fora do perímetro urbano, formaram-se as lavouras, campos de pecuária e os engenhos de açúcar.

[14] s/d.

[15] Além da instabilidade geológica, os cientistas eram, as vezes, surpreendidos com as explosões que visavam encontrar os possíveis tesouros enterrados pelos jesuítas.

 

[16] Que horas são? Esta pergunta era respondida após observar o Morro do Castelo; um relógio na torre do Observatório Nacional, onde era içado um balão ao alto do mastro para indicar o meio-dia. (KESSEL, 1997).

[17] Revista Careta, 4 de setembro de 1920 (apud VELLOSO, 1998, p. 30).

[18] Havia projetos que sugeriam a urbanização e transformação do Castelo em pólo de atração turística (VELLOSO, 1998).

[19] Não foi somente a cidade do Rio de Janeiro que copiou o estilo francês.  Várias cidades do mundo também copiou esse modelo.

 

[20]. CAVALCANTI, J. Cruvelo. Nova Numeração dos Prédios da Cidade do Rio de Janeiro.