Texto publicado no Jornal O Globo, edição de 13 de abril de 2005,  p. 7

 

Título : A morte do Papa

 

Autor: Roberto DaMatta ( antropólogo )

 

Você pode medir a experiência  de uma pessoa perguntando-lhe sobre os Papas de sua vida. Cada geração tem um Papa, e o Papa se identifica de tal ordem com o papado e com a Igreja da qual é o chefe com poderes divinos e infalíveis, que temos a impressão de que ele possui a perpetuidade do cargo e do papel que encarna. E não é para menos, pois, sem essa Igreja Católica Apostólica Romana que tanto criticamos, não haveria a tal civilização ocidental.

 

Para muitos, o Papa foi o polonês Karol Wojtila, encarnado no papel como João Paulo II, cuja morte abre um enorme vazio no seio da comunidade católica mundial, ao mesmo tempo que revela ao mundo o poder de preenchimento e renovação desta comunidade.

 

Quando eu crescia e tomava consciência de que havia um Papa em Roma, um chefe da Igreja capaz de decretar dogmas, uma palavra cujo sentido profundo eu até hoje tenho dificuldade em assimilar e compreender, uma torrente de questões pesavam sobre minha consciência de católico, porque a materialidade do Papa, o castelo onde residia, as roupas ricas e bizarras que vestia, o trono do qual se dirigia ao povo, a retórica aristocrática que o envolvia e que remetia às origens históricas e simbólicas do papado, perturbavam a mensagem de pobreza e despojamento de Cristo. Como, indagava, o Papa pode ser tão gloriosamente rico, se Cristo foi esplendorosamente pobre ?

 

Era difícil para mim entender que Cristo não foi nem Papa nem chefe de uma igreja – uma instituição humana e, como tal, repleta de sinais e estigmas deste mundo. Cristo, como Deus encarnado, deixou um dos seus discípulos, Pedro, as chaves do Reino e a tarefa de organizar aquilo que viria a ser o pontificado – a ponte a ligar este mundo com o outro. A escolha de Pedro, apóstolo que negou Cristo três vezes, apóstolo que negou Cristo três vezes, como gerente das portas do Céu, é mais do que reveladora. É adequada e justa como um ato de aceitação do humano ( com suas dúvidas e seus paradoxos ) pelo divino. Algo igualmente coerente com o papel paradoxal dos porteiros e guardiães das entradas, espaços entre a casa e a rua.

 

Se deveria haver uma segunda mediação entre o Céu e a Terra, um caminho a ser pavimentado pela Igreja, mais rotineiro e tranqüilo, entre Deus e os homens. Uma mediação menos cruenta, menos terrível e messiânica, ela teria que ser colocada sobre os ombros daquele apóstolo que foi a um só tempo o mais humano e o mais emblemático. E se deveria existir uma igreja de Cristo neste mundo, uma instituição destinada a oferecer piedade e salvação para todos os homens, irmanados sem diferença  pela mensagem universal e antitribal de Cristo, essa igreja teria de se revestir dos sinais da pompa e da circunstancia que, afinal de contas, marca todo chefe das grandes instituições humanas.

 

Só mais tarde, então, é que eu fui compreender que, muito menos do que o trono, os palácios e as vestes, era a conduta, o exemplo, a autenticidade pessoal, e as decisões que contavam. Na Igreja, a pompa é uma metáfora para uma grandeza que se situava fora deste mundo. Já nas realezas e nos governos dos estados seculares, a pompa é uma das formas reais de afirmação do poder de destruir e mandar.

 

Neste sentido, o papado é cercado de pura pompa, ao passo que um chefe de Estado tem, como insinuou Stalin para Pio XII, suas divisões e, hoje, suas bombas de hidrogênio. O chefe de um estado tem poder físico, o Papa conta “apenas” com esse contundente poder mobilizador da  fé, da esperança e da caridade que testemunhamos com certa surpresa nesses dias de despedida do corpo do Papa e de reconstituição do papado.

 

Eu que supunha que Deus estava devidamente morto, fiquei surpreso com a tsunami de religiosidade e de transcendência despertada pela morte do Papa. É claro que aguardava o espetáculo das demagogias, do qual salta aos olhos o gesto do comandante Fidel ao quebrar o seu jejum de missa. Mas me surpreendeu os gestos de solidariedade, de fé e de admiração pelo Papa, testemunhos de um misto de nostalgia e atração pelo divino, esse divino que fica do outro lado, e que a vida moderna tem sistematicamente exorcizado quando projeta pôr neste mundo aquilo que as religiões de salvação situavam no outro.

 

É certo que a avassaladora homenagem ao Papa no seu funeral aconteceu porque o papado é uma instituição centralizadora, porque a Igreja ainda tem um importante papel a desempenhar no mundo moderno e porque, com certeza, João Paulo II foi um Papa que entendeu o seu papel como um agente religioso – como um peregrino como foi muito justamente chamado – num mundo globalizado.

 

Tudo isso ajuda a entender a avalanche de fé que baixou sobre a Terra, transformando a Roma moderna numa cidade de devoção à antiga, onde o espetáculo não era apenas o do esporte, da moda, do dinheiro, da sensualidade e da boa vida. Era o do reconhecimento de uma liderança, de um símbolo de limites: de uma referência moral. Essa referência sem medo de acreditar e com consciência plena de que a limitação humana transborda na divindade, tal como a busca da vida faz com que a divindade procure o humano. 

 

 

 

Texto publicado no Jornal O Globo, edição de 25 de abril de 2005,  p. 7

 

Título : Bento XVI, o Papa da continuidade

 

Autor: Carlos Alberto Di Franco ( jornalista )

 

A formidável cobertura da imprensa à eleição do Papa Bento XVI revela alguns sinais importantes. O primeiro deles, sem dúvida, é a notável unidade dos cardeais. A surpreendente rapidez do processo eleitoral foi um testemunho inequívoco de que João Paulo II, ao longo dos seus 27 anos de pontificado, investiu generosamente na construção da unidade da Igreja. A eleição meteórica do então cardeal Ratzinger foi, no fundo, um forte chamado à unidade e à continuidade.

 

O Papa Bento XVI foi descrito por seu antecessor como “íntimo colaborador” e “estimado irmão”. Durante a celebração das bodas de prata episcopais do cardeal Ratzinger, em 20 de abril de 2002, João Paulo II elogiou o serviço prestado por seu fiel colaborador com o seu “incansável compromisso em benefício da verdade, que conduz os filhos de Deus para a liberdade autêntica”. As palavras do falecido Papa, afetuosas e agradecidas, definem bem o perfil do novo Papa: um defensor da verdade que conduz à autêntica liberdade.

 

Bento XVI, à semelhança de João Paulo II, é um brilhante intelectual que aposta na força libertadora  da verdade. Na segunda-feira passada, o então cardeal Joseph Ratzinger, ao celebrar a missa de abertura do conclave, foi claríssimo a respeito do que espera dos católicos: “Ter uma fé clara, segundo o credo da Igreja, é freqüentemente catalogado como fundamentalismo, ao passo que o relativismo, isto é, o deixar-se levar ‘ao sabor de qualquer vento de doutrina’, aparece como a única atitude à altura dos tempos atuais. Vai-se constituindo uma ditadura do relativismo que não reconhece nada como definitivo e que usa como critério último apenas o próprio ‘eu’ e as suas vontades. Nós, pelo contrário, temos um outro critério: o filho de Deus, o verdadeiro homem. É ele a medida do verdadeiro humanismo. Não é ‘adulta’ uma fé que segue as ondas da moda e a última novidade; adulta e madura é antes uma fé profundamente enraizada na amizade com Cristo. É esta amizade que se abre a tudo aquilo que é bom e que nos dá o critério para discernir entre o que é verdadeiro e o que é falso, entre engano e verdade”.

 

Alguns, equivocadamente, vislumbram fervores conservadores no pensamento e na ação do novo Papa. Desejariam, como escrevi recentemente, um Papa que deixasse de ser cristão para ser mais bem aceito? Pretenderiam que, perante o deslizamento do mundo para baixo, com a glorificação de aberrações ideológicos e morais, o Papa exercesse a sua missão acompanhado a descida, cedendo a tudo e limitando-se a belos discursos de paz e amor, e a um ecumenismo em que todos os equívocos se pudessem congraçar, porque ninguém acreditaria mais em coisa alguma, a não ser em “viver bem”?

 

Os críticos, poucos, embora inflados por certas orquestras midiáticas, estão na contramão do sentimento da sociedade. Certa vez, Hanz Küng, ex-teólogo católico e expoente da minoria contestatária ao papado, foi curiosamente interpelado por  um pastor protestante: “Tudo o que o senhor pede para o catolicismo – abolição do celibato, ordenação de mulheres etc.”, sublinhou o pastor – “nós já temos”. “Como é possível, então, que os nossos templos estejam muito mais vazios do que as igrejas católicas?” Küng não conseguiu esboçar nenhuma resposta. A realidade dos fatos desnudou a inconsistência das suas teorias teológicas. A onda impressionante de devoção popular em que se transformou o funeral de João Paulo II e a eleição de Bento XVI, um espetáculo multicolorido e com forte presença jovem que tomo conta do Vaticano, mostram de que lado o povo está.

 

O pontificado de Bento XVI será, estou certo, um testemunho de fé, convicção e coragem. Ao contrário dos que dentro da Igreja Católica cederam aos apelos da secularização, o novo Papa sempre acreditou que a firmeza na fé e a fidelidade doutrinal acabarão por galvanizar a nostalgia de Deus que domina o mundo contemporâneo. Acredita que o esgotamento do materialismo histórico e a frustração do consumismo hedonista prenunciam um novo perfil existencial. Na visão do novo Papa, o Terceiro Milênio trará o resgate do verdadeiro humanismo.

 

 

 

 

 

 

 

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