Segurança Pública no Rio de Janeiro

 

Segue abaixo uma matéria da publicação da Universidade Federal Fluminense - MOMENTO UFF, nº 147 – fevereiro/março de 2004 à pág. 6 e 7 decorrente de uma entrevista do Prof. Helio de Araujo Evangelista ( www.feth.ggf.br ) para a jornalista Pamela Archontakis e ao bolsista Daniel Braga. Na matéria sobre a segurança pública no Rio de Janeiro consta a participação de dois outros professores da universidade, a saber: Roberto Kant e Dalcy Fontanive.

 

 Obs. ao término da matéria consta a entrevista acima citada na íntegra!

 

Violência e narcotráfico: um combinação explosiva

 

Ele é famoso, bilionário e faz questão de aparecer, embora não deixe pistas dos principais detalhes de sua intimidade. Manchete quase diária nos meios de comunicação, sua principal característica é o “talento” para movimentar muito dinheiro, comprar pessoas e destruir vidas. O narcotráfico é assim: brutal e impiedoso mas, para muitos, é um “negócio da China”.

 

As cifras são alarmantes: em 2000, o comércio de entorpecentes movimentou, no mundo inteiro, cerca de US $ 1,5 trilhões de dólares, uma economia que supera o PIB do Canadá. [i] E no Brasil, a cada ano, o narcotráfico é responsável pela lavagem de US $ 15 bilhões de dólares – o equivalente a 3% do PIB nacional. [ii]

 

Segundo maior setor de movimentação econômica do planeta – perdendo apenas para o petróleo -, o tráfico de drogas também tem sido um dos grandes responsáveis pelo estrondoso aumento da violência no Rio de Janeiro nos últimos anos. Para se ter uma idéia, no período de 1985 a 1991, houve 70.061 homicídios no município, enquanto que nos sete anos da Guerra do Vietnã foram mortos 56 mil americanos. [iii]

 

O que aconteceu, principalmente na cidade do Rio de Janeiro, para que a situação chegasse a esse ponto ? Muitos falam em impunidade, outros na total ausência do poder público e há ainda os que responsabilizam a polícia, destacando o fato de que está desaparelhada, maltreinada, despreparada para enfrentar os traficantes. Três professores da UFF foram entrevistados sobre o tema e, por meio de sua análises, é possível compreender um pouco mais a situação existente e perceber toda a sua complexidade.

 

Jogos do poder

 

No “tabuleiro” do narcotráfico, algumas peças cruciais para que ele alcançasse a dimensão atual. A primeira delas data do século XIX e seu criador, o Barão de Drummond, talvez não imaginasse que, um dia, seria usada no comércio de entorpecentes. È o que revela o professor do Departamento de Geografia da UFF, Helio de Araujo Evangelista, em sua pesquisa O Rio de Janeiro: violência, jogo do bicho e narcotráfico segundo uma interpretação, obra recém-publicada. Nela, o estudioso descreve a trajetória do jogo do bicho no Rio de Janeiro.

 

Criado em 1892 para dar fim à profunda crise financeira enfrentada pelo Jardim Zoológico do Rio, o jogo se transformou, mais de um século depois, em ponte para o estabelecimento do tráfico na cidade. Esse processo foi gradual e contou com alguns fatores  importantes. Um deles era a realidade suburbana, menos glamourosa que o dia-a-dia dos moradores da Zona Sul carioca. “Em direção aos subúrbios, pela linha de trem, nós tínhamos uma economia informal, e mais especificamente o jogo do bicho, a ‘fezinha’ da população mais pobre. Esse costume foi deitando raízes nos hábitos populares e justificando a construção de uma verdadeira rede de contatos, um histórico, uma relação de lideranças e traços de fidelidade entre diferentes grupos e pessoas”, explica Evangelista.

 

Ao longo do tempo, a trajetória da “fezinha” foi marcada por violentos conflitos entre os bicheiros pelos pontos de venda, pelas perspectivas áreas de influência ou ainda quando surgiam novos quadros que pretendiam entrar no “negócio”. Esse cenário, por si só cheio de conflitos, iria sofrer uma importante modificação com a introdução da cocaína na cidade do Rio de Janeiro.

 

O aliado que vem de fora

 

Até 1970, a Cidade Maravilhosa já servia de local de passagem para as drogas enviadas aos Estados Unidos e à Europa. A partir de então, com a chegada da cocaína, o Rio passou a ser também forte consumidor de entorpecente. Além disso, o comércio do jogo do bicho foi fortemente impelido a se aliar ao narcotráfico internacional, pois, segundo Evangelista, a nova forma de ganhar dinheiro soou como um desafio aos bicheiros. Assim, os contraventores do jogo do bicho tiveram de escolher entre ficar de fora do “negócio” – e, conseqüentemente, não ter acesso aos altíssimos lucros gerados por ele – ou se aliar, de alguma forma, aos traficantes, que “poderiam trazer problemas aos seus interesses porque entrariam em circuitos informais, como corrupção de autoridades e suborno”, diz o professor.

 

Alguns bicheiros optaram, então, por mostrar o caminho das pedras ao narcotráfico: ofereciam sua rede de contatos – facilitando o monitoramento das atividades dos traficantes – e, em troca, participariam dos lucros da nova “economia”. Estava formada, assim, uma aliança que atuaria de forma mais coesa até a década de 1990, quando, por meio de um processo judicial instaurado pela juíza Denise Frossard, o prestígio dos bicheiros seria fortemente afetado.

 

Ascensão e queda

 

A pesquisa realizada pelo professor Helio Evangelista apresenta dados sobre o começo do fim da notoriedade dos bicheiros, observada principalmente na década de 80. Segundo a pesquisa, que utiliza informações do Anuário do Estado do Rio de Janeiro para os anos 1999 – 2000, do total de crimes cometidos em 1992 ( em torno de 51 mil ), apenas 26 foram motivados por envolvimento com o jogo do bicho. E entre os anos de 1993 e 1999, embora o número de ocorrências tenha aumentado significativamente, a criminalidade relacionada ao jogo do bicho diminuiu de forma considerável. De acordo com o professor, isso “indica uma clara política em coibir o jogo do bicho”, mas, simultaneamente, “não parece que esta política de cerceamento tenha tido um efeito notório contra o narcotráfico”. [iv]

 

Com o desgaste sofrido pelos bicheiros, novas lideranças começaram a aparecer. Data dessa época, por exemplo, o surgimento do chamado Terceiro Comando, facção oposicionista ao Comando Vermelho, que tinha, até então, “uma certa hegemonia no imaginário transmitido pela imprensa sobre os grupos envolvidos com o narcotráfico”. Ainda assim, a relação jogo do bicho – narcotráfico não terminaria, apenas ficaria delibitada. “Ao longo da década de 90, parece ter ocorrido um pesado choque de interesses. Ocorreu uma ruptura entre as duas trajetórias, de tal modo que o narcotráfico continuou sua ascensão, e o jogo do bicho a sua trajetória de decadência”, afirma Evangelista.

 

Narcotráfico & violência S.  A .

 

Os contraventores do jogo do bicho defendiam e controlavam territórios. Já os narcotraficantes criaram outro tipo de controle, de “comando”: a chamada organização do tráfico. Segundo o professor e doutor em Psicologia da Educação da UFF Dalcy Fontanive, o tráfico se sofisticou nas últimas décadas, chegando a ponto de seguir modelos empresariais de atuação. “Ele está armado das tecnologias e conhecimentos que toda empresa e toda grande organização precisam para se manterem”, diz. Além de formar “funcionários” para seus quadros e se militarizar com impressionante facilidade, atualmente o narcotráfico adquiriu status de Estado paralelo também no Rio de Janeiro. “O narcotráfico, até 2002, era visto sob uma perspectiva estritamente financeira e lucrativa. Depois disso, passa a ser instrumento de intimidação, criando um poder maior de barganha. Hoje existe um processo de tentativa de se fazer render a cidade e de tornar as autoridades propensas a abrir certos tipos de franquias”, afirma o professor Helio Evangelista.

 

Todo esse poder do narcotráfico não parece ter sido exatamente conquistado mas, de certa forma, até mesmo permitido. Principalmente no cenário político, onde ainda é possível observar o uso do discurso da segurança pública para a obtenção de votos. De acordo com Evangelista, existe uma utilização da questão do narcotráfico visando a objetivos eleitorais, “O narcotráfico é um artigo político. Então, não raro, existem campanhas de pessoas que focalizam essa questão da segurança, fazendo uso instrumental desse problema”, ressalta o pesquisador.

 

Caso de polícia ?

 

Até há bem pouco tempo, os agentes do tráfico atuavam em uma área de “penumbra” e suas ações permaneciam restritas a certos pontos, envolvendo um número limitado de pessoas. Atualmente, as mafiosas “leis” do tráfico são aplicadas à luz do dia, em qualquer esquina, atingindo qualquer pessoa. Diante desse quadro de total insegurança, a população, desconhecendo a complexidade da questão do tráfico, deseja soluções imediatas e efetivas. E algumas autoridades reagem destacando um sem número de policiais que fazem apreensões recordes de armas e não economizam na hora de atirar. Para o coordenador do Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Ciência Política da UFF e do Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas ( Nufep ), professor Roberto Kant de Lima, a visão que se tem do problema é limitada é retrógrada. “Somos 170 milhões de habitantes. Para resolver o problema, precisaríamos colocar 65 milhões vigiando os outros 65”, ironiza. O professor afirma também que a questão da violência é vista sob um prisma estritamente repressivo. “Uma vez que temos uma cultura em que é premiado todo aquele policial que dá tiros em bandido, enquanto é esquecido aquele que consegue evitar o confronto, se torna difícil abordar o assunto de forma adequada. A questão não pode ser tratada somente do ponto de vista prático, imediato, e sim de uma forma preventiva e com preocupação pelo social”, assegura.

 

Por ser um assunto complexo, a violência gerada pelo narcotráfico não tem soluções mágicas, instantâneas. “Armar a Guarda Municipal, por exemplo, é fazer mais do mesmo. Se quiserem mais gente armada, praticando mais violência, haverá mais gente armada, mais tiros e mais balas perdidas”, enfatiza o professor.

 

Sobre as campanhas veiculadas pela mídia que afirmam que os patrocinadores do narcotráfico seriam os próprios usuários, Kant é incisivo: “Eu poderia dizer também que quem patrocina o tráfico é a lei que proíbe o uso de certas drogas e autoriza o uso de outras. Esta lei cria o tráfico, pois está formando um mercado ilícito de um produto desejado.” Segundo o professor, a visão que se tem do assunto é totalmente distorcida. “Todos nós somos usuários de alguma droga, seja ela cerveja, cigarro, maconha ou remédios para dormir. No mundo inteiro é consenso que o problema está no uso patológico das drogas, quando o indivíduo passa a abusar delas”, afirma.

 

Para o professor Dalcy Fontanive, além de equivocada a análise sobre a realidade das drogas é insuficiente quando se desconhece a diferença entre dois personagens: o traficante e o “trabalhador do tráfico”. “O traficante é aquele que assume a transgressão e a comercialização proibida das drogas. O ‘trabalhador do tráfico’ é quem faz disso um meio de subsistência, de sobrevivência”, ressalta. Para Fontanive, essa distinção não pode passar despercebida. “Acho que a polícia não deve tratar o trabalhador do tráfico da mesma forma que age em relação ao traficante”, conclui.

 

Sociedade dependente

 

Autor da pesquisa Universidade, educação e drogas , publicada pelo CNPq em 1999, o professor Dalcy Fontanive, que é especialista na questão das drogas no ambiente universitário, revela que 10% da população mundial dependem de algum tipo de droga. De acordo com sua pesquisa, 26,5% dos universitários são dependentes. No primeiro lugar do ranking estão as drogas lícitas, seguidas das drogas ilícitas ( ver tabela abaixo com a pesquisa realizada em quatro universidades do Rio de Janeiro ).

 

Qual a explicação para esse fenômeno ? Segundo Fontanive, a resposta pode estar na inversão de valores por que passa  a atual sociedade. “Estamos em um mundo onde se vive muito em função do prazer imediato e onde se valoriza muito mais a questão do ter do que a do ser. É um mundo que aceita a idéia de existir uma espécie de ‘paraíso’ aqui na Terra. Esse aceno de um paraíso terrestre é enganador e o mesmo acontece com a droga. Ela te oferece um monte de coisas, quando ela acaba, te deixa na pior”, explica.

 

Possíveis saídas

 

O consenso entre os especialistas sobre a solução para a violência desenfreada e a expansão do narcotráfico é de que não se trata de assunto exclusivamente policial. Para o professor Helio Evangelista, “o combate ao narcotráfico é geralmente visto a partir de uma perspectiva policial: bota polícia, dá tiro, mata. Mas não se focaliza a engrenagem financeira, monetária, que passa por bancos e que sustenta essa malha de fornecimento de drogas e de armas. É um combate que se faria sem dar um tiro”, ressalta. Evangelista afirma que o governo tem de se empenhar na investigação do chamado dinheiro sujo. “O Banco Central é um órgão próprio para o reconhecimento de contas bancárias que são um tanto anômalas. Isso merece investigação. Mas tem de haver consenso político que torne isso prioridade, porque fica difícil para um funcionário do Banco Central, por exemplo, trabalhar sem respaldo institucional e policial”, alerta.

 

Para o professor Roberto Kant de Lima, uma saída seria investir em ações conjuntas. “O problema da violência será resolvido com atitudes inteligentes, integradas ao diversos setores da sociedade”, diz. Já Fontanive vê a questão das drogas como um reflexo da própria sociedade atual. “A droga é uma radiografia da sociedade. Ela revela os curto-circuitos que existem nela e, portanto, não é uma questão de polícia, mas de educação”, conclui.

 

Distribuição dos usuários por tipos de drogas

Total geral de entrevistados : 2.631

Total de usuários habituais ( dependentes ): 669

Total e percentual de usuários habituais por droga:

Fumo:  260                                             9.88%

Álcool :  96                                             3.65%

Medicam. Psicotrópicos:   168               6.39%

Maconha:   147                                        5.58%

Cocaína:  24                                            0.91%

Heroína:   4                                             0.15%

Total :   669                                             26.56%

Fonte: “Universidade, Educação e Drogas”, pesquisa do professor Dalcy Fontanive publicada pelo CNPq em 1999

 

 



[i] Revista Caros Amigos, ano VI, número 70, janeiro de 2003.

[ii] Agência Estado, 29/3/2001.

[iii] Violência e narcotráfico no Rio de Janeiro: perspectivas e impasses no combate ao crime organizado, tese defendida por Ricardo Vélez Rodriguez na Universidade Federal de Juiz de Fora.

[iv] A redação deste parágrafo encontra-se inadequada; a rigor, ocorreu um salto das pessoas presas dado o envolvimento com o jogo do bicho na primeira metade da década de 90, e um posterior declínio no número destas na segunda metade da década de 90.

 

 

 

Volta

 

 

 

 

 

 

Integra da entrevista com a jornalista Pamela Archontakis Coelho

 

Helio - Quando você analise o narcotráfico e o jogo do bicho, numa perspectiva acadêmica, não-policial, quais