Revista geo-paisagem (on line)

Ano  9, nº 18, 2010

Julho/Dezembro  de 2010

ISSN Nº 1677-650 X

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Reflexões sobre as UPPs e a fragmentação do tecido sociopolítico-espacial na cidade do Rio de Janeiro.

 

 

Anderson Andrada: Mestrando em geografia pela UERJ

( andersonandrada@gmail.com )

Resumo

A cidade do Rio de Janeiro passa por um processo de fragmentação do tecido sociopolítico-espacial, com a classe média “protegida” nos condomínios fechados, os espaços públicos cada vez mais anêmicos causando sensação de insegurança aos que frequentam e as favelas dominadas por traficantes de drogas que formam verdadeiras fortalezas do tráfico. A atual política de segurança vem através das Unidades de Policiamento Pacificadora tentar diminuir esses efeitos perversos, mas ao mesmo tempo em que é recebida com grande otimismo por parte da população e da imprensa, vem sofrendo criticas pontuais de moradores e acadêmicos. Qual será então o papel dessas UPPs?

 

Palavras-chaves: segurança, Rio de Janeiro,  UPP

 

Abstract

 

The city of Rio de Janeiro is in a process of fragmentation of the sociopolitical and spatial tissue, with the middle class "protected" in closed condominium, public spaces increasingly anemic and causing a feeling of insecurity and those who attend the slums dominated by drug dealers drugs that form real strengths of trafficking. The current security policy comes through the Policing Unit Pacification attempt to diminish these effects, but at the same time it is received with great optimism for much of the population and the press, has been suffering occasional criticism from residents and academics. What then is the role of these UPPs?

 

 Key words: Security, Rio de Janeiro, UPP

 

 

1.      Introdução

 

           

            Este artigo propõe uma análise das modificações que a Unidade de Policiamento Pacificadora (UPP) pode trazer para o atual processo de fragmentação do tecido sociopolítico-espacial do Rio de Janeiro, em particular, observando as mudanças na comunidade do morro Dona Marta. Localizada no bairro de Botafogo, foi a primeira comunidade ocupada por essa nova política de segurança do Estado no ano de 2008, o que gerou uma grande discussão sobre a viabilidade de tal projeto e os reais efeitos para a população.

            Segundo a secretaria de segurança a Unidade de Policiamento Pacificadora é um novo modelo de Segurança Pública e de policiamento que promove a aproximação entre a população e a polícia, aliada ao fortalecimento de políticas sociais nas comunidades. Ao recuperar territórios ocupados há décadas por traficantes e, recentemente, por milicianos, as UPPs objetivam levar a paz às comunidades do Morro Santa Marta (Botafogo – Zona Sul); Cidade de Deus (Jacarepaguá – Zona Oeste), Jardim Batam (Realengo – Zona Oeste); Morro da Babilônia e Chapéu Mangueira (Leme – Zona Sul); Providência (Centro); Borel (Tijuca)....[1]

            Pois então como essa nova estratégia pode modificar o esgarçado tecido sociopolítico-espacial do Rio de Janeiro? Será que essa política de segurança pública pode ajudar a “costurar” este tecido e melhorar o sentimento de insegurança que se encontra na cidade, além de aumentar a interação da população carioca? Os efeitos das UPPs já estão sendo sentidos em vários níveis, como por exemplo, a valorização dos imóveis próximos as regiões onde há uma UPP instalada. Pesquisa do Sindicato da Habitação (Secovi) constatou uma valorização de até 148,89% nos valores de locação e de 59,41% nos de venda de imóveis em bairros beneficiados pelas unidades na Zona Sul.[2] Os moradores dos bairros onde as UPPs estão sendo instaladas também parecem estar satisfeitos, associando a queda da criminalidade e construção de um ambiente mais tranqüilo, à instalação dessas. Presidente da Associação dos Moradores e Amigos de Copacabana, Myriam de Pinho Barbosa diz que a população do bairro têm se sentido mais segura desde a inauguração das UPPs na região.  Em entrevista ao jornal O DIA ela afirma: “Estamos muito satisfeitos. É visível como tudo melhorou muito de um tempo para cá. Hoje em dia, andamos nas ruas despreocupados, os moradores já não reclamam mais de assaltos como antigamente” [3]. Até mesmo os seguros de carros devem cair nas áreas que estão próximas as UPPs. É o que foi divulgado por mais um meio de comunicação com a seguinte manchete: “Seguro de automóvel vai cair com as UPPs: índices menores de roubos em áreas com as unidades vão impactar valores das apólices”. [4]

            Percebe-se então um apoio da mídia para a instalação das UPPs no Rio de Janeiro. E os moradores das comunidades ocupadas, o que acham dessa política? Uma pesquisa organizada pela Fundação Getúlio Vargas entre os dias 22 e 27 de maio de 2009 demonstrou uma grande satisfação dos moradores nas comunidades Dona Marta e Cidade de Deus. Quando perguntados se achavam que essa política de atuação deveria ser estendida para outras comunidades, 97% dos entrevistados do Dona Marta responderam que sim e 95% dos que moravam na Cidade de Deus também concordaram.[5] Nota-se mais uma vez que esse discurso pela segurança e ocupação policial está colocado para a maioria da população como a solução dos altos índices de violência que assolam o Rio de Janeiro.

            Como as reportagens e as próprias pesquisas demonstram, todos clamam por mais UPPs e mais vigilância nesses enclaves de traficantes de drogas pelo bem maior que é a segurança. Mas será que a vigilância e a repressão massificada realmente ajudam a minorar essa fragmentação do tecido sociopolítico-espacial carioca? É relevante verificar como a ruptura dos ordenamentos anteriores, marcados pela participação do tráfico de drogas, tem desconstruído e reconstruído as relações de poder dentro dessas comunidades e como a nova ordem pode, concomitantemente, alterar a vida da população local já que corriqueiramente projetos são feitos sem ao menos consultar a associação de moradores.

            Podemos demonstrar essa questão com a carta feita no dia 13/10/2009 (quase dez meses depois da ocupação) pelos líderes da comunidade endereçada à sociedade que diz:

 

SANTA MARTA LUGAR MAIS VIGIADO DO RIO

 

 No final de agosto os moradores do Santa Marta foram surpreendidos, pelos jornais e televisões, com a notícia  de instalação de nove  câmeras  em diferentes pontos da favela. O medo de ser mal interpretada imobilizou a comunidade.

Muita gente da rua e algumas pessoas do morro, por motivos e razões diferentes, aplaudem esta idéia. No entanto: se somos uma favela pacificada, porque continuam  nos tratando como perigosos? Muros, três postos de polícia, 120 soldados, câmeras – será que não está havendo um exagero?  Quando é que seremos tratados como cidadãos fora de qualquer suspeita?...

 Quando é que os moradores serão ouvidos sobre os destinos dessa comunidade? Precisamos discutir e refletir sobre isso coletivamente.

 O medo está paralisando a comunidade e impedindo-a de se manifestar criticamente. Mas somente o exercício dos nossos direitos é que vai garantir a nossa liberdade. “Paz sem voz é medo”...[6]

 

            Constatamos então que não é unanimidade a visão de que as UPPs podem salvar o Rio de Janeiro. Trocar enclaves de traficantes por novos enclaves de pobreza monitorados para agir de uma forma que não abale o status quo, pode não costurar nosso tecido sociopolítico-espacial.

            No dia 06/06/10, o jornal O DIA traz a seguinte manchete: “Muito longe da pacificação” [7]. A matéria se referia a UPP instalada na Ladeira dos Tabajaras (comunidade separada por aproximadamente 1,5 Km do Dona Marta) onde os mototaxistas  eram revistados várias vezes por dia, além de serem limitados de 50 para 40. Embora seja considerado ilegal pela secretaria de transportes, é uma das poucas opções disponíveis para as pessoas que moram no alto do morro. Sem outras opções depois da meia noite, como proibir esse transporte para as pessoas mais idosas que moram no alto? Proibir é regularizar e ao mesmo tempo diminuir o acesso. Costura do tecido ou esgarçamento?

            Costurar este tecido é criar mobilidade segura e diminuir estigmas criados no decorrer das últimas décadas em nossa cidade. É trazer novamente a interação entre a população da cidade que fez o povo carioca ser reconhecido como alegre.

            Depois da expulsão do Tráfico de drogas e a ocupação da polícia militar, temos esse novo processo. A UPP Dona Marta coloca 120 policiais para o policiamento da comunidade e com vigilância 24 horas por todas as entradas, 624 metros de muro com 3 metros de altura que cerca toda comunidade, além disso, foram instaladas câmeras que monitoram as áreas estratégicas[8]. Embora seja um espaço público, os policiais costumam abordar qualquer suspeito ou pessoa nova no local.

            O fato da polícia ocupar a região não é o mais importante. A população local pode continuar desterritorializada, como nos diz Haesbaert:

 

Desterritorialização, se é possível utilizar a concepção de uma forma coerente, nunca “total” ou desvinculada dos processos de (re)territoriaização, deve ser aplicada a fenômenos de efetiva instabilidade ou fragilização territorial, principalmente entre grupos socialmente mais excluídos e/ou profundamente segregados e, como tal, de fato impossibilitados de construir e exercer efetivo controle sobre seus territórios, seja no sentido de dominação político-econômica, seja no sentido de apropriação simbólico-cultural. (HAESBAERT, 2004, p. 312).

 

            A ocupação policial precisa afastar de vez a territorialização de traficantes de drogas do subsistema de varejo e (re) territorializar a população local.          

            De acordo com Souza, “nosso modelo social mostra-secriminógeno”, em especial nos dias que correm, ao despertar um irrefreável desejo de consumo em muitos ou quase todos, ao mesmo tempo em que propicia somente a poucos a chance de satisfazer seus desejos de modo legal.” (SOUZA, 2008, p. 148). Por assim ser, uma quantidade de pessoas obrigatoriamente são excluídas do trabalho, tanto formal, como informal, sem necessariamente serem excluídas do sistema capitalista.

            Dessa forma podemos também por em dúvida se apenas vigiar e expulsar o tráfico de drogas no varejo das comunidades pode ser uma solução real da cidade ou só mais uma forma de fazer uma “contenção” da proliferação de enclaves de traficantes, sem atingir a base do problema. Segundo Haesbaert (2009), essa “contenção” é provisória e paliativa, criando um efeito-barragem e fazendo com que os fluxos que tentam ser contidos – no caso de traficantes de drogas – acabem encontrando outras canais por onde possam se reproduzir e fluir.  

            De acordo com este pensamento, em uma macro escala pode ocorrer um aumento da criminalidade dos espaços que não serão “contemplados” pelas UPPs e assim criminosos expulsos por essa estratégia de segurança pública de um lado podem se concentrar em outras áreas. Podemos observar algo desse tipo ocorrendo em regiões sem UPP como nos coloca a notícia do site do Instituto de Segurança Pública (ISP) no dia 12/05/2010 quando fala que: “Apesar de índice de homicídio cair no Rio, Madureira tem crescimento de 83%” [9].

            Em um momento em que a população carioca está tomada pelo medo, as UPPs vêm para apaziguar, ou pelo menos aumentar no imaginário a segurança vivida. Essa política não tem indícios de ser temporária, pois a copa do mundo (2014) e as Olimpíadas (2016) pedem uma cidade pacífica ou pelo menos sem grandes espetáculos de violência como o ocorrido no morro dos Macacos em 2009, quando um helicóptero da polícia militar foi derrubado. Na sociedade brasileira onde as instituições disciplinares como o sistema carcerário estão funcionando de forma péssima, parece que os dispositivos de segurança da biopolítica foucaultiana entram em ação através dessas UPPs em uma forma de garantir segurança à população. Basta descobrir quais as possíveis positividades e negatividades que essas políticas levam ao tecido sociopolítico-espacial da cidade do Rio de Janeiro.

 

  1. As Upps e a migração dos traficantes

 

Uma das questões mais polêmicas nas instalações das Upps é o fato de normalmente não haver confrontos. Praticamente todas as UPPs foram realizadas sem confrontos entre policiais e traficantes, sendo exceção o Morro do Turano na Tijuca. A pergunta que costuma ser feita é: os traficantes vão para uma outra área? Com os acontecimentos de 2010 no Complexo do Alemão parece que a resposta foi dada. Sim. Grande parte dos traficantes que chefiavam outros morros pediram abrigo no Complexo do Alemão, transformando a área em uma verdadeira fortaleza do tráfico. Centenas de homens e fuzis faziam a proteção. Estimativas colocavam como, aproximadamente, 800 homens. A cena filmada por uma rede de televisão que mostrava mais de 50 homens fugindo da Vila Cruzeiro em direção ao Alemão impressionava.

            Não haver confronto é sempre bom, pois no confronto sofrem os moradores, o policial e o próprio bandido que acaba morto, e morte nunca é uma coisa interessante, até mesmo para os números da cidade. Não havendo confronto esses bandidos vão deslocar-se, pelo menos a maioria, deixando em paz a comunidade abandonada. Observe que a comunidade abandonada onde se recrutavam principalmente crianças para o narcotráfico, não será mais uma produtora de criminosos. Devemos deixar claro para o leitor que uma minoria apenas da comunidade opta por ser parte do esquema das drogas, porém uma minoria que faz um estrago gigantesco para os moradores das comunidades e para a cidade como um todo. A cultura do tráfico com suas músicas e seus ídolos deixam de existir e assim, gradativamente uma nova geração pode crescer sem uma influencia negativa. Diminuir uma das situações para a violência e mais ainda, diminuir a formação de novos criminosos é fundamental e parece estar se resolvendo com as UPPs. No Morro Dona Marta, algumas atitudes dos policiais tentam reverter a imagem da polícia constituída depois de anos de ações truculêntas com a comunidade para uma imagem positiva e até mesmo inspiradora. Veja o caso das aulas de artes marciais promovidas ou ainda um baile para adolescentes de 15 anos, onde os príncipes foram os policiais fardados das próprias UPPs. Parece que essa fábrica de criminosos das fortalezas do tráfico vem mudando e uma nova geração cresce de forma positiva.

            Quanto aos criminosos que migraram para outras comunidades, levando seus armamentos, vão ter em algum momento o enfrentamento com a polícia. No Complexo do Alemão as forças de segurança, contando com exército, marinha e todas as polícias somavam cerca de 2800 homes, enquanto aproximadamente 600 traficantes resistiam. A superioridade numérica fez com que o confronto não fosse tão forte assim. Menos mortes e menos feridos do que quem sabe confrontos em ocupação de todas as UPPs. Além disso, devemos lembrar que os bandidos que hoje saem de determinada comunidade como chefes do tráfico, ou gerentes, não vão se tornar chefes do tráfico em outras comunidade para a qual vão migrar. Portanto seus poderes irão diminuir. Se existissem 20 comunidades com seus donos e 12 foram ocupados, restarão apenas 8 chefes, independente de terem sobrevivido a invasão ou não. Essa diminuição do poder faz com que, de alguma forma, as grandes fortalezas do tráfico que caracterizam a geografia do Rio de Janeiro sejam também diminuídas e mesmo os grandes exportadores de drogas que não vivem nas comunidades e sim nas áreas nobres da cidade, também vejam seu poder cair. Esses dois fatores juntos, ou seja, diminuição da cultura do tráfico nas comunidades e como conseqüência diminuição da formação de novos bandidos, principalmente crianças, somado a diminuição do poder de certos chefes ou donos de morro, podem sim desestabilizar o crime organizado e diminuir a cultura da violência.

Devemos lembrar ainda que existe um certo ‘desemprego’ dentro do próprio tráfico. Pessoas muitas vezes esperam na fila para poder entrar para a quadrilha. A explicação é simples, como o tráfico trabalha como uma empresa capitalista, precisa de um certo lucro para “empregar” uma certa quantidade de pessoas. Então se em uma determinada comunidade existem 50 vagas para soldados, vapores entre outros, mesmo que cheguem mais 50 de outra comunidade não somarão mais 50 “empregos”. Vão continuar sendo apenas 50, o que apaga um pouco a impressão de que só existe a migração de bandidos expulsos da UPP, para outras áreas que terão o dobro da violência. A violência pode num curto prazo até aumentar especificamente naquela área, mas como um todo para a cidade irá diminuir, pois o poder desses criminosos também irá diminuir. Sem contar é claro que depois de meses, algumas comunidades que receberam traficantes, também podem ser ocupadas por novas UPPs.

Assim sendo, as UPPs se mostram eficazes mesmo que haja uma migração de bandidos para áreas vizinhas, e esses resultados serão sentidos a médio e longo prazo, tanto pela diminuição da formação de novos criminosos pelas comunidades ocupadas quanto pela perda de territórios dos traficantes armados. Sabemos é claro que toda desterritorialização é composta em seguida por uma reterritorialização, porém, assim como existem aglomerados de exclusão que podem compor a verdadeira desterritorialização, podemos observar que mesmo os traficantes de drogas podem também se reterritorializar em outras áreas, mas como ocorre nos aglomerados, terão menos poder sobre o espaço ocupado.

           

 

 

 

3.      Uma base teórico-conceitual das UPPs

 

            O estudo é baseado a partir dos conceitos de “biopolítica” e “dispositivos de segurança” de Foucault e da “fragmentação do tecido sociopolítico-espacial” estudada por Marcelo Lopes de Souza.

                De acordo com Souza (2006) a fragmentação do tecido sociopolítico-espacial se insere no contexto da formação de enclaves territoriais formados por traficantes de varejo, auto-segregação das elites e classe média, conversão de espaços públicos e outros espaços situados entre aqueles dois extremos em espaços de hipervulnerabilidade.

            Quanto maior o clima de insegurança, maior será a formação dos condomínios exclusivos que abrigam elites e diminuem mais a interação dos cidadãos, como podemos ver em Souza, ao afirmar que:

 

A “cidade prisão”, os muros, as cercas eletrificadas e os aparelhos de vigilância, o medo, a segregação, a auto-segregação e suas “bolhas de proteção”: tudo isso colabora para gerar um tipo de criança, depois de adolescente e finalmente de cidadão, muito diferente daquele socializado em um espaço onde as formas espaciais, os territórios e as imagens espaciais e símbolos escritos na paisagem traduzam liberdade e estimulem a solidariedade. (SOUZA, 2006, p. 263).

 

            Quanto aos espaços públicos que hoje passam a ser vigiados, cercados e abandonados por uma parcela da população que se refugia nos espaços auto-segregados, nota-se que está anêmico e hipervulnerável (SOUZA 2005, 2006, 2008 e 2010). Podemos observar também, que embora a população possa sofrer com a violência em qualquer lugar da cidade, são nos locais próximos aos enclaves de traficantes de drogas que no imaginário popular está o grande perigo de um iminente crime. Quanto mais se afasta desse local, mais segura a pessoa fica. Verdade incompleta, essa afirmação ganha corpo ao observarmos os tiroteios entre traficantes e policiais em comunidades do Rio de Janeiro. O barulho de um tiro, mesmo que afastado, causa uma grande sensação de insegurança na população. Assim fica evidente que esses espaços públicos evitados pela sensação de insegurança estão ajudando a fragmentar o tecido sociopolítico-espacial da cidade.

            Ainda temos os próprios enclaves de traficantes de drogas no varejo que parecem ser o motor da fragmentação. Como podemos falar que vivemos em uma democracia se ainda encontramos uma população sujeita a ordens arbitrárias de um grupo de traficantes onde a norma e também as leis são por eles feitas? A população das comunidades é a que mais sofre com a violência, pois além de sentirem o lado ruim do tráfico, são atingidas por policiais que muitas vezes as tratam como se fossem inimigas e também com o preconceito cada vez maior da sociedade.

A outra base do presente trabalho está em Foucault (2008a, 2008b) que identifica três modelos de “leis penais” usados da Idade Média até a os dias atuais. O modelo legal ou jurídico, mais antigo, consiste em estabelecer uma lei e punir severamente os que a desobedecem. O modelo disciplinar que aparece a partir do século XVIII, através de uma série de técnicas como a vigilância, transforma/regenera os delinqüentes e tenta evitar novos crimes. No “atual modelo” (não que os outros deixem de existir, mas há uma predominância deste), a biopolítica e os dispositivos de segurança passam a ser o mais importante no combate ao crime. O Estado deve saber as regiões onde há a maior possibilidade de existir algum delito através dos dados estatísticos e assim, agir da melhor forma para proteger a sociedade. Devemos lembrar que a melhor forma é a que tem o melhor custo benefício.

Este conceito nos conduz a crença de que a formação das UPPs está diretamente ligada aos “dispositivos de segurança” quando observamos o depoimento do Secretário de Segurança do Estado do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame: “É um numero muito pequeno de pessoas para causar pânico em 16 milhões de pessoas. O Rio de Janeiro não é violento. O Rio de Janeiro tem núcleos de violência. Temos índices de criminalidade em determinadas áreas do Rio de Janeiro que são europeus.” [10]

Complementando essa ideia, Neto analisa que:

 

Uma dessas ameaças, entre tantas, seria o terrorismo. O pacto de segurança explica porque a repercussão do terrorismo sobre os Estados é tão impactante. Segundo Foucault, o terrorismo não constitui uma ameaça real e direta à força do Estado; é num outro plano que ele constitui um perigo. Quando o terrorismo atinge a população, é percebido pelo Estado como uma ameaça, porque põe em risco não diretamente o aparelho do Estado, mas o pacto de segurança, pacto que é a condição de aceitabilidade das suas relações com a população, cuja segurança é sua função garantir. (NETO, 2007, p. 81)

 

            Segundo Foucault[11] apud Neto (2007), “toda a campanha sobre a segurança pública deve estar apoiada – para ter credibilidade e ser rentável politicamente – por medidas espetaculares que provem que o governo pode agir, rapidamente e firmemente, acima da legalidade. Agora, a segurança está acima da lei.”. Pensamento compartilhado e aprofundado por Agamben em sua obra “Estado de Exceção” e que reforça a ideia de UPP como manutenção do “pacto de segurança”.

 

 

 

Referências bibliográficas

 

AGAMBEN, G. Estado de Exceção. 2004. São Paulo, Boitempo.

BARCELOS, Caco. Abusado: O Dono do Morro Dona Marta. 20° edição. Rio de Janeiro: Record, 2009.

FOUCAULT, M. Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

___________. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008a

___________. Segurança, Território e População. São Paulo: Martins Fontes, 2008b

___________. Vigiar e Punir, 36° edição. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

HARVEY, David. Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 6 ed. São Paulo: Loyola, 1996.

HAESBAERT, Rogério. O mito da Desterritorialização: Do “Fim dos Territórios” à Multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.

___________. Sociedades biopolíticas de in-segurança e des-controle dos territórios. In: Oliveira, M. et al. (orgs.) O Brasil, a América Latina e o Mundo: Espacialidades Contemporâneas. Rio de Janeiro: Lamparina, 2008

___________. Dilema de Conceitos: Espaço Território e Contenção Territorial. In: : Saquet, M. e Sposito, E. (org.) Territórios e Territorialidades: teorias, processos e conflitos. São Paulo: Expressão Popular. 2009.

NETO, Leon Farhi. Biopolítica em Foucault. [Dissertação de Mestrado]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2007.

SAAD, Paulo, "Santa Marta: ousar urbanizar a favela", in RIO DE JANEIRO (CIDADE), Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, "PENSAR E FAZER - A política habitacional e fundiária da cidade do Rio de Janeiro", Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 1988.

SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço. Editora: Hucitec. 1996.

SOUZA, Marcelo Lopes de. O desafio metropolitano: Um estudo sobre a problemática sócio-espacial nas metrópoles brasileiras, 2° edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.

____________. A prisão e a ágora : Reflexões sobre a democratização do planejamento e da gestão das cidades. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.

____________. Fobópole: O Medo Generalizado e a Militarização da Questão Urbana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.

____________. Mudar A Cidade: uma introdução crítica ao planejamento e à gestão urbanos. Rio de Janeiro, 6° edição. Bertrand Brasil, 2010.

Volta


[1] Disponível em: < http://upprj.com/wp/?page_id=20>. Acesso em: 20/10/2010.

 

[2] O GLOBO 13/03/2010, Página 26 – “Benefícios muito além dos morros: UPP agrada também a moradores do asfalto e valoriza imóveis.”

 

[3] O DIA 13/05/2010, Página 4 – “Número de homicídios no Rio é menor já registrado”

 

[4] O DIA 06/05/2010, Página 24. – “Seguro de automóvel vai cair com as UPPs”

 

[5] Disponível em: http://www.seguranca.rj.gov.br/exibe_pagina.asp?id=397 . Acesso em: 05/07/2010.

 

[6] O cartaz citado foi entregue pelo presidente da associação dos moradores, Zé Mário, ao autor deste pré-projeto.

 

[7] O DIA 06/06/2010, Página 15.

 

[8] Dados coletados em entrevista concedida pelo Subcomandante da UPP Dona Marta, Capitão Andrada, no dia 02/08/2010, ao autor deste pré-projeto.

 

[9] http://urutau.proderj.rj.gov.br/isp_imagens/Uploads/SaiunaImprensa10_175.pdf

 

[10] Disponível em:  https://www.defesa.gov.br Acesso em: 13/10/2010.

 

[11] FOUCAULT, Michel. Michel Foucault: la sécurité et l’État. Texto 213 [1977]. In: DE2, 386.