Revista geo-paisagem (on line) Ano 8, nº 15, 2009 Janeiro/Junho de 2009 ISSN Nº 1677-650 X Revista indexada ao Latindex Revista classificada pelo Dursi Revista classificada pela CAPES |
A IMPORTÂNCIA
DO ESTUDO DA GEOGRAFIA HISTÓRICA PARA A COMPREENSÃO DO ESPAÇO URBANO
Autores: Paulo
Cezar de Barros[1]
e Fernando da Costa Ferreira[2]
Resumo
O
texto versa sobre geografia e história e modo como tal relação afeta
o grau de percepção e compreensão do espaço urbano.
Palavras
chaves: geografia, história, cidade
Abstract
The papper shows kow can be useful the
relationship between geography and history
to understand urban space.
Key-words: geography, history ,
city
APRESENTAÇÃO
Ao caminharmos pela cidade, deparamo-nos com uma paisagem
rica em símbolos e significados. Como nos lembra Milton Santos, a paisagem é a
soma de tempos desiguais. Desta forma, em relação ao espaço urbano, não podemos
ignorar a importância da análise multidimensional das escalas de temporal e
espacial.
A geografia não pode ignorar a dimensão temporal do espaço
urbano. Assim sendo, pretendemos discutir um tema que é ainda subutilizado nos
estudos da Geografia Urbana, a Geografia Histórica.
Atualmente,
vivemos um momento de mudança onde a instantaneidade das informações permite a
homogeneização dos lugares. Neste sentido, visando a sua sobrevivência, a
sociedade busca singularidades que possam identificar os lugares, e o passado é
uma das dimensões mais importantes da singularidade, materializado na paisagem (ABREU,
1998).
Sendo assim,
este artigo propõe mostrar como o uso da Geografia Histórica pode contribuir
para o melhor entendimento das formas atuais do espaço urbano de um modo geral,
e de suas partes, analisadas na escala do bairro.
A DIMENSÃO TEMPORAL DO
ESPAÇO: A GEOGRAFIA HISTÓRICA
.
Dentre os vários campos da ciência geográfica, a geografia
histórica que tem como proposta explicar geografias passadas, é um dos mais
polêmicos.
A esse respeito Karl Ritter[3] afirma
que “A ciência geográfica não pode desprezar o elemento histórico, se pretende
ser verdadeiramente um estudo do território e não uma obra abstrata, uma
moldura através da qual se veja o espaço vazio...”.
Santos (1992), Harvey (1996), Abreu (1998) e Magnoli (1999)
nos mostram a importância da dimensão temporal no estudo da organização
espacial, apesar da histórica negligência por parte dos geógrafos.
Desta forma, o novo está condicionado pelo anterior,
conforme podemos observar na citação de Santos (1992):
“Alguns elementos cedem lugar, completa ou
parcialmente, a outros da mesma classe, porém mais modernos; outros elementos
resistem à modernização; em muitos casos, elementos de diferentes períodos
coexistem. Alguns elementos podem desaparecer completamente sem sucessor e
elementos novos podem se estabelecer” (p.p. 21-22).
Em seguida, ele insiste no conceito de estrutura
espaço-temporal para analisar o espaço geográfico ou espaço concreto:
“A
sociedade só pode ser definida através do espaço, já que o espaço é o resultado
da produção, uma decorrência de sua história – mais precisamente, da história
dos processos produtivos impostos aos espaços pela sociedade” (p. 49).
Moreira
(1981) também participa deste debate. Ao
analisar o espaço geográfico, o autor enfatiza:
“Produto
histórico, o espaço confunde-se com o tempo. O espaço é o tempo histórico. Não
o tempo-data. A noção kantiana de tempo como lugar da história e de espaço como
lugar da geografia, promovendo a separação entre tempo e espaço e entre
história e geografia, só fez dar origem àquilo que Michel Foucaut chamou de
“espaço congelado”. O tempo histórico não é o tempo de relógio (tempo-data,
tempo-sideral) e o espaço geográfico não é o espaço das coordenadas
geográficas. Embora a história embuta-se no calendário e o espaço geográfico
embuta-se na rede de coordenadas (latitude e longitude), tempo e espaço são
coordenadas da história. São as propriedades dessa matéria chamada conteúdo
histórico” (p. 90).
Lowenthal (1995)
diz que o passado é “um país estrangeiro”, de difícil entendimento. Para o
autor, os vestígios do passado coexistem com o presente, desafiando a nossa
compreensão de um passado tangível, porém remoto.
Neste sentido,
Santos (1999) enfatiza que
“o passado é um outro lugar, ou, ainda melhor, num
outro lugar. No lugar novo, o passado não está; é mister encarar o futuro:
perplexidade primeiro, mas, em seguida, necessidade de orientação” (p. 263).
Para Abreu
(1997), o território atual ainda é influenciado por normas institucionais do
passado:
“sem entendê-las, não seremos capazes de compreender
bem os espaços atuais e nem poderemos intervir eficazmente sobre eles, seja
para melhorá-los, seja para modificá-los” (p.198).
Entretanto, apesar da importância da dimensão temporal, esta
categoria é pouco desenvolvida e inserida na dimensão espacial. Logo, a
geografia histórica é ainda um grande mistério para os geógrafos. Segundo Phillo (1996) o mistério da geografia
histórica começa na própria definição do seu objeto de pesquisa. Diferentemente de outras subdisciplinas da
geografia (econômica, social, urbana, agrícola etc.), a geografia histórica não
possui um objeto claramente definido.
Não está em discussão, segundo o autor, a importância da
relação temporal nas investigações geográficas, pois “a geografia do mundo está
estreitamente ligada com o que acontece em sua história” (PHILLO, 1996, p.
270), mas sim em estabelecer os limites teórico-metodológicos entre a geografia
e a história.
Neste sentido, Santos (1996) cita Élisée Rechus para
enfatizar que não existe geografia sem história: “Geografia é a História no
espaço e a História é a Geografia no tempo” (p. 42).
Hassinger (1952) ao analisar os fatores geográficos no
processo histórico, vê uma estreita relação muito antiga existente entre essas
duas ciências. Essa relação não é apenas superficial. O autor diz:
“
De fato, Geografia e História nasceram juntas. Com o divórcio ocorrido no final do século
XIX, construíram-se limites disciplinares rígidos (MASCARENHAS, 2001). Phillo
(1996) lembra que os geógrafos não se sentem à vontade para tratar de fenômenos
destituídos de uma materialidade no espaço, e isso fez com que muitos
pesquisadores concentrassem suas investigações em torno de objetos materiais
que geram um impacto na organização espacial atual, se distanciando assim, dos
fenômenos imateriais do lugar.
Desta forma, analisar o imaterial colocaria a geografia em
segundo plano, ou seja, “por trás” da história, o que resultaria numa
investigação ligada à história geográfica.
Phillo (1996) concorda com essa idéia.
Para o autor, grande parte dos estudos ligados à geografia histórica
deixou de respeitar os limites da ciência geográfica, seguindo o caminho de uma
história geográfica.
Para Hartshorne, por exemplo, a dimensão temporal ficaria “atrás”,
ou seja, em segundo plano nos estudos espaciais (PHILLO, 1996). Como então unir tempo e espaço mediante a
relativação de um ou de outro, na medida em que espaço e tempo são a mesma
coisa?
Santos (1996) nos
lembra que a questão do tempo nos estudos geográficos não é mais um tabu, mas
possui ainda uma frouxidão conceitual. O
autor enfatiza que em cada lugar o tempo atual se defronta com o tempo passado,
cristalizado
Empericizar o tempo significa torná-lo material (SANTOS,
1996). O tempo se materializa no espaço
através das diversas formas construídas em cada época. A paisagem é resultado
da soma de tempos desiguais, pois as mudanças estruturais não podem recriar
todas as formas (SANTOS, 1992). Desta
maneira, somos obrigados a usar as formas do passado:
“nos conjuntos que o
presente nos oferece, a configuração territorial, apresentada ou não em forma
de paisagem, é a soma de pedaços de realizações atuais e de realizações do
passado” (SANTOS, 1997, p. 69).
Para Carlos (2001), analisar a dimensão temporal é
fundamental para compreender o espaço urbano:
“Ela é essencialmente algo não definido;
pois não pode ser analisada como um fenômeno pronto e acabado, pois as formas
que a cidade assume ganham dinamismo ao longo do processo histórico. A cidade
tem uma história” (p. 57).
Smolka (1983) enfatiza que a contribuição da geografia
histórica tem sido tímida e limitada no debate sobre a estruturação das cidades
brasileiras. Para ele, a reconstituição
histórica do espaço urbano fornecerá subsídios importantes para o entendimento
da organização interna da cidade.
A cidade como espaço historicamente construído cria e
organiza novas formas e funções, assim como a cristalização de formas antigas,
assumindo ou não novas funções. As
rugosidades, isto é, as formas pretéritas inseridas em um novo contexto
sócio-espacial, nos mostram a materialização do passado como marca histórica,
lugar de contemplação do que existiu:
“Chamemos rugosidade ao que fica do
passado como forma, espaço construído, paisagem, o que resta do processo de
supressão, acumulação, superposição, com que as coisas se substituem e acumulam
em todos os lugares. As rugosidades se apresentam como formas isoladas ou como
arranjos” (SANTOS, 1996, p. 113).
Segundo Abreu (1998), a geografia pode ter um importante
papel nos estudos da valorização da memória urbana. Conforme o autor, apesar de ser a memória um
elemento fundamental para a identidade de um lugar, esse termo é impreciso para
resgatar o passado dos lugares. A
memória tem um caráter subjetivo, ou seja, lembramos somente daquilo que
queremos lembrar. Neste sentido, a
memória tenta buscar referências de um tempo que ficou perdido no passado,
contribuindo de forma inquestionável para resgatar a identidade de um lugar.
Memória e história constituem metáforas mútuas (LOWENTHAL,
1985). A memória, ao contrário da história, não seria um conhecimento
intencionalmente produzido. Como já frisado, a memória é subjetiva e, como tal,
um guia para o passado, transmissor de experiência, simultaneamente seguro e
dúbio.
Le Goff (1990)
afirma que a memória é um elemento essencial da identidade, individual ou
coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das
sociedades atuais. Para o autor, a memória procura salvar o passado para servir
como norteador para o presente e o futuro.
Abreu (1998) lembra
que existem diferenças entre memória e história. Como já citamos, a memória é seletiva, como
também é parcial. A história busca a
objetividade, a verdade. Para tal, relaciona
os fatos aos processos que atuam em escalas que são ao mesmo tempo desiguais e
combinadas. Em suma, a história de um
lugar não pode se ater aos processos puramente locais. Logo, a história tem um papel mais importante
do que a memória para o resgate do passado de um lugar.
Santos (1997) chama a atenção da importância de diferenciar
história da cidade de história do urbano.
Urbano é o abstrato, o geral, o externo.
Quando analisamos a história do urbano, destacamos a história das
atividades urbanas, do emprego, das classes, da divisão do trabalho etc. A
cidade é o concreto, o particular, o interno.
Desta maneira, quando estudamos a história da cidade, enfatizamos a
história da propriedade, da habitação, da mobilidade residencial, da
centralidade etc.
Entretanto, como já citado, a história comete um pecado
quando estuda as cidades. Ao resgatar o
tempo passado, ela perde o lugar. Não podemos esquecer que as categorias tempo
e espaço são inseparáveis. Para Abreu
(1998), só existe uma saída para a geografia: resgatar a história do lugar.
“O resgate da memória de um lugar, da
memória de uma determinada cidade, só é possível se pudermos trabalhar ao mesmo
tempo em duas frentes de investigação. Temos que aliar a base segura da análise
histórica ao esteio não menos seguro que a geografia proporciona” (ABREU, 1998,
p. 18).
De que maneira a geografia pode colaborar no resgate do
passado dos lugares? Buscando o espaço
perdido pela história. Como? Contextualizando os processos sociais no
tempo e no espaço:
“É necessário reconhecer, primeiramente,
que cada lugar é, ao mesmo tempo e em cada momento histórico, o ponto de
interseção de processos sociais que se desenvolveram em diversas escalas”
(ABREU, 1998, p. 19).
Por muito tempo, os trabalhos de geografia urbana vinham se
limitando a tratar unicamente o presente.
Isso vem sendo “quebrado” com a abertura da disciplina à corrente
marxista, o que valorizou a dimensão temporal.
Segundo Santos (1997) e Abreu (2003), é fundamental abordar
a cidade contextualizando-a no seu passado, sendo um trabalho obrigatório para
os geógrafos, pois o espaço é por excelência uma categoria histórica. Portanto, é fundamental que o geógrafo ao
olhar o espaço urbano dê atenção, além da escala espacial, à escala temporal.
É importante ressaltar que a Geografia Histórica tem se
limitado também à reconstituição de antigas formas. Apesar de importante, Abreu (1998) destaca
que a geografia não pode enfatizar apenas a questão descritiva. É preciso avançar, analisando as normas
jurídicas e sociais, ou seja, as formas não espaciais que dão função às formas
morfológicas.
Desta maneira, a Geografia Histórica além de reconstituir
as paisagens pretéritas, deve explicar a sua formação com base nas
características culturais e políticas (HASSINGER, 1952).
A história de
um lugar é um elemento vital para a construção da identidade individual e
coletiva: “Sem saber onde estivemos, é difícil saber para onde estamos indo”
(HARVEY, 1993, p. 85 apud MELLO,
2002, p.64), sem a qual poderá transforma-se também em instrumento de poder.
Lowenthal
(1996) frisa que, atualmente, nada parece vender tão bem como o passado. Mas
afinal, por que estamos “possuídos pelo passado?” Para o autor o ritmo
frenético das transformações acaba enfraquecendo as representações de
continuidade. O passado tornar-se assim, uma referência, isto é, um elemento
norteador para a sociedade.
Neste
contexto, Abreu (1998) diz que a sociedade brasileira está mudando a sua
maneira de “olhar” o urbano, sendo a tendência atual a valorização do passado
das cidades:
“Depois de um longo período em que só se cultuava o
que era novo, um período que resultou num ataque constante e sistemático às
heranças vindas de tempos antigos, eis que atualmente o cotidiano urbano
brasileiro vê-se invadido por discursos e projetos que pregam a restauração, a
preservação ou a revalorização dos mais diversos vestígios do passado” (p. 5).
Para o autor,
a “volta ao passado” se deve a vários fatores.
O século XX foi marcado por inúmeras tragédias, apesar dos inegáveis
progressos técnicos e científicos. A
decepção do projeto de criação de uma sociedade nova e justa tornou o futuro
incerto. A sociedade passou a desconfiar
do futuro e valorizar o que já foi construído no passado. Outro fator importante é a aceleração do
tempo com a globalização da economia, o que faz com que a sociedade busque
referências, e estas, podem ser encontradas no passado.
REFLEXÕES A RESPEITO DO
ESPAÇO URBANO
Antes de tudo, é importante frisar que espaço
urbano não é um campo de estudo exclusivo da geografia. Trata-se, portanto, de
um objeto interdisciplinar que exerce grande atração entre estudiosos que
procuram compreender a sociedade, a saber: historiadores, geógrafos,
economistas, sociólogos, antropólogos, urbanistas, planejadores e políticos,
além do capital em suas inúmeras frações (CORRÊA, 2003).
Lefebvre (1999) critica o reducionismo das ciências especializadas que estudam o fenômeno urbano. O autor lembra que o acesso à totalidade ocorre não pela soma ou justaposição dos resultados dessas ciências. Assim, isoladas, cada uma delas se perde na fragmentação, no dogmatismo ou no niilismo.
Como pensar o espaço urbano,
soltando as “amarras” que isolam a geografia de outras ciências sociais?
Carlos (1994) percebe que a
geografia urbana apresenta uma diversidade de enfoques teórico-metodológicos
que visam buscar a compreensão da realidade espacial. Para a autora, há
atualmente no desenvolvimento da pesquisa urbana, a quebra da “solidão do
trabalho intelectual”.
Segundo Corrêa (1992) o espaço
urbano é um conjunto de diferentes usos da terra justapostos entre si. Como um complexo jogo de quebra-cabeças, sem
limites rígidos entre as peças, o autor define a organização espacial da cidade
como um espaço altamente fragmentado.
“O
espaço urbano capitalista – fragmentado, articulado, reflexo, condicionante
social, cheio de símbolos e campos de lutas – é um produto social, resultado de
ações acumuladas através do tempo, e engendradas por agentes que produzem e
consomem espaço” (p. 11).
No entanto, antes de ser fragmentado, o espaço urbano é
também uma totalidade. A dialética totalidade/fragmentação é importante, e será
o nosso ponto de partida para compreensão da cidade. Acreditamos, portanto, que
o espaço urbano visto pela lógica da dialética, deve ser entendido como uma
totalidade, enquanto processo.
Desta maneira, a cidade é uma totalidade fragmentada em
inúmeras estruturas e formas articuladas. Como sustentação teórica, usaremos a
noção de totalidade proposta por Santos (1992):
“Cada coisa nada mais é que parte da
unidade, do todo, mas a totalidade não é uma simples soma das partes. As partes
que formam a totalidade não bastam para explicá-la. Ao contrário, é a
totalidade que explica as partes” (p. 93).
Como nenhum lugar se auto-explica,
troquemos a “parte” por bairro e a “totalidade” por estrutura urbana, e
entenderemos melhor Milton Santos.
E mais, Santos (1998) enfatiza que o espaço não é formado
apenas por fixos. É constituído também por
diferentes fluxos que interconectam os diversos objetos criados pala sociedade:
“O
espaço é, também e sempre, formado de fixos e de fluxos. Nós temos coisas
fixas, fluxos que se originam dessas coisas fixas, fluxos que chegam a essas
coisas fixas. Tudo isso, junto, é o espaço. Os fixos geram fluxos e os fluxos
geram fixos (...) Os fluxos são o movimento, a circulação e assim eles nos dão,
também, a explicação dos fenômenos da distribuição e do consumo. Desse modo, as
categorias clássicas, isto é, a produção propriamente dita, a circulação, a
distribuição e o consumo, podem ser estudados através desses dois elementos:
fixos e fluxos” (p. 77).
Estas duas interpretações (totalidade e fixos/fluxos) nos
ajudarão a compreender melhor a evolução urbana.
Outra questão importante é a inseparabilidade entre ação e
objeto. Assim, não basta definir os
objetos em sistemas. É necessário
definir qual o sistema de práticas que sobre ele se exerce:
“Em cada período, há, também, um novo
arranjo de objetos. Em realidade, não há apenas novos objetos, novos padrões,
mas, igualmente, novas formas de ação. Como um lugar se define como um ponto
onde se reúnem feixes de relações, o novo padrão espacial pode dar-se sem que
as coisas sejam outras ou mudem de lugar. É que cada padrão espacial não é
apenas morfológico, mas, também, funcional. Em outras palavras, quando há
mudança morfológica, junto aos novos objetos, criados para atender a novas
funções, velhos objetos permanecem e mudam de função” (SANTOS, 1992, p. 77).
Os fluxos
(pessoas, mercadorias, capitais, idéias etc) unem as partes desta totalidade
fragmentada. Desta forma, Corrêa (1992)
chama a atenção que os fluxos envolvem circulação material e menos visível como
idéias e decisões. Assim, a cidade é constituída por relações espaciais de
natureza social, ou seja, a sociedade e suas contradições. Concluindo: as
relações sociais ou espaciais ao mesmo tempo fragmentam e articulam o espaço
urbano.
O autor entende que a espacialidade diferencial de uma
metrópole capitalista é fruto dos processos e características sociais. Neste sentido, ela é ao mesmo tempo um
reflexo social e um condicionante social.
Ao se tratar de uma sociedade de classes, o autor enfatiza:
“E, por tratar de uma espacialidade
situada no bojo de uma sociedade de classes, desigual, a espacialidade implica
desigualdades, refletindo e condicionando a sociedade de classes, e tendendo à
reprodução das desigualdades” (CORRÊA, 1992, p. 29).
A
metrópole é, portanto, um ambiente construído, onde a primeira natureza
encontra-se em escala reduzida e os fixos, fluxos e pluralidade social
apresentam grande diversidade. O Rio de Janeiro é um caso a parte, pois a
natureza ainda possui um papel condicionante, como já observado, na vida dos
seus habitantes.
A cidade é o lugar onde se manifestam as contradições da
sociedade (LEFEBVRE, 1999). Como o espaço urbano é produzido e apropriado
através de conflitos entre classes sociais em diferentes temporalidades, não
podemos ficar restritos apenas em nível da escala espacial. Sobre esta questão,
Abreu (2002) diz:
“Se esta forma de estudar as cidades
transforma-as em ricos mananciais de pesquisa, ela faz também com que sua
interpretação seja bem mais difícil e complexa, pois só poderá ser realizada se
trabalharmos, ao mesmo tempo, com diferentes escalas (e categorias) espaciais e
temporais” (p. 97).
O autor lembra que no passado os
geógrafos pensavam a cidade exclusivamente a partir de sua dimensão singular,
restrita à escala local. Atualmente, a cidade é observada como um lugar de
interseção de processos sociais originados em diversas escalas espaciais.
Assim, alguns processos são mundializados, e só devem ser analisados em nível
de escala global. Outros, no entanto, devem ser interpretados em nível de
escala local. Visualizar a interseção desses processos é um método necessário
para se compreender a totalidade do espaço urbano, como podemos observar nesta
citação:
“Entender como esses processos se
entrecruzam num determinado lugar, e acabam por imprimir marcas na sua paisagem
e nas suas representações, é, pois, um desafio empolgante” (ABREU, 2003, p.
97).
Entretanto,
o autor chama a atenção para não se trabalhar restritamente com as escalas
espaciais. É necessário inserir a escala temporal:
“Não basta, entretanto, trabalhar com as
escalas espaciais; há que se dar igual atenção à dimensão temporal. No que diz
respeito às formas já sabemos que devemos considerar as cidades como
acumulações de tempo. Mas isso não basta. É preciso também que reconheçamos que
os processos sociais que ocorrem no presente das cidades, que dão sentido às
formas que ali estão, precisam – eles também – ser inseridos em múltiplas
escalas temporais. Se o tempo do evento, do acontecimento, do imediato é aquele
que mais nos chama a atenção, por estar mais próximo de nós, por se
materializar em paisagens e representações que são rapidamente captadas pelos
nossos sentidos, por alterar a nossa vida quotidiana, ele só adquire
significado maior se o inserirmos em tempos mais espessos, tempos braudelianos,
tempos da conjuntura e da longa duração. E estes, por sua vez, só podem ser corretamente
compreendidos quando relacionados com as escalas espaciais. Isto porque o que
nos interessa é o tempo social, e este só faz sentido quando relacionado ao
espaço. Fecha-se, pois, o círculo” (Op. cit., p. 97).
A
partir deste prisma é que pretendemos estudar o espaço urbano, visualizando-o
como uma totalidade, onde suas partes são apropriadas em diferente
espacialidades e temporalidades. A citação de Salgueiro (2002) vai ao encontro
ao que acabamos de afirmar. Segundo ela:
“Na cidade encontramos coexistência de
espaços apropriados para diferentes usos e funções e com diferentes ritmos ou
em diferentes tempos e devemos salientar o fato de a geografia pouco ter
estudado a relação entre este para fundador: o espaço e o tempo” (p. 99).
A autora frisa que um mesmo
território pode ser apropriado por diferentes grupos na realização de práticas
sociais ao longo do dia, do mês ou do ano. Assim, “a paisagem urbana tem
impressos tempos passados, as marcas do território são memória de outros tempos
e outras espacialidades” (Op. cit., p. 99).
Assim, este método nos permite
visualizar como a sociedade se apropria de um lugar, dando-lhe formas e
significados, pois a cada momento há um modo específico de produção de
espacialidades e temporalidades, conforme podemos observar nesta citação:
“A produção hegemônica da cidade procura
viabilizar de modo eficiente a produção econômica pelo espaço e pelo tempo. Por
isso arrasa os lugares do tempo lento e substitui-os pelas novas paisagens”
(Op. cit., p. 101).
É a partir da junção desse olhar geográfico à análise histórica dos
processos que alteraram a forma-função do espaço urbano ao longo dos séculos,
que conduziremos a nossa discussão a partir de agora a análise de uma de suas
subdivisões mais importantes: o bairro.
COMPREENDENDO O CONCEITO DE BAIRRO
Procurando no dicionário,
a palavra bairro é classificada como “cada uma das divisões principais de uma
cidade; pequeno povoado ou arraial” (BUENO, 1980, p. 163). Segundo Souza (1989)
esta palavra teria origem nos termos árabes barr ou bar, que
significariam terra, campo, campo imediato a uma população, sendo somente
encontrado este termo nos idiomas espanhol (barrio), português (bairro)
e catalão (barri). (p. 153)
Ao longo dos anos, múltiplas foram as definições encontradas acerca do bairro e da sua importância dentro de um contexto maior representado pela cidade.
Existe uma grande discussão acerca da definição dos limites precisos do bairro. Essa delimitação se faz necessária para o planejador e o administrador com vistas à elaboração de políticas públicas. Entretanto, para os moradores, tais limites apresentam um caráter muito mais subjetivo. Segundo Souza (1989):
(...) As pessoas inconsciente ou conscientemente sempre “demarcam” seus bairros, a partir de marcos referenciais que elas, e certamente outras antes delas, produzindo uma herança simbólica que passa de geração a geração, identificam como sendo interiores ou exteriores a um dado bairro (...) Para existir um bairro, ainda que na sua mínima condição de referencial geográfico, é necessário haver um considerável espaço de manobra para a intersubjetividade, para uma ampla interseção de subjetividades individuais. (p. 150)
Strohaecker (1989) define o bairro como sendo “identidade e originalidade em um contexto maior definido como cidade” (p.1). Ainda a respeito da ligação entre o conceito de bairro com a questão da identidade e a sua importância para o entendimento do espaço urbano, Souza (1989) escreve o seguinte:
(...) o bairro pertence àquela categoria de “pedaços da realidade social” que possuem uma identidade mais ou menos inconfundível para todo um coletivo; o bairro possui uma identidade intersubjetivamente aceita pelos seus moradores e pelos moradores dos outros bairros da cidade, ainda que com variações. (p. 149 grifo do autor)
Para Soares (1995) existe uma relação estreita entre bairro e cidade. Segundo ela “cidade e bairro são, pois, uma coisa só: não se pode compreender uma cidade sem analisar os seus bairros, mas ao estudarmos um bairro, temos que ter em mente a cidade a que ele pertence” (p. 120).
Tuan (1980) cunhou o termo topofilia para designar a profunda afeição que as pessoas têm por determinados espaços sociais. Podemos citar o bairro como um local onde essa afeição se manifesta de maneira bastante acentuada – para alguns de seus moradores – devido ao fato dele ser uma porção da cidade com a qual nos relacionamos intimamente. É o que constatamos a partir da seguinte afirmação:
(...) Uma cidade grande é freqüentemente conhecida em dois níveis: um de grande abstração e outro de experiência específica. Em um extremo, a cidade é um símbolo ou uma imagem (expressa em um cartão postal ou um lema) pela qual podemos nos orientar; no outro, é o bairro intimamente experenciado. (TUAN, 1980, p.259)
Ainda analisando a visão de Tuan a respeito do bairro, em sua obra Espaço e Lugar (1983), o autor relaciona-o aos dois conceitos expressos no título da publicação. Segundo ele, enquanto o lugar representa a segurança, o espaço nos remete à sensação de liberdade, pois as pessoas se sentem apegadas ao lugar, ao mesmo tempo em que desejam a liberdade sugerida pela idéia de espaço. Sendo assim, “quando o espaço nos é inteiramente familiar, torna-se lugar” (p.83). Desse modo, o bairro seria uma das representações do lugar, devido à sensação de pertencimento e familiaridade que um indivíduo tem em relação àquela área enquanto espaço vivido e sentido. Segundo ele:
(...) Para o novo morador, o bairro é a princípio uma
confusão de imagens; “lá fora” é um espaço embaçado. Aprender a conhecer o
bairro exige a identificação de locais significantes, como esquinas e
referenciais arquitetônicos dentro do espaço do bairro. (...) Quando residimos
por muito tempo em um determinado lugar, podemos conhecê-lo intimamente, porém
a sua imagem pode não ser nítida, a menos que possamos também vê-lo de fora e
pensemos em nossa experiência (p.p. 20-21).
Aproveitando a
noção de topofilia elaborada por Tuan, o geógrafo brasileiro Marcelo
José Lopes de Souza sugere a adoção do termo bairrofilia para designar
“à simpatia, que se realiza como afeição pelo bairro, apego ao bairro” (1989,
p.150).
Souza enxerga
o bairro como resultado da convergência de duas dimensões: uma objetiva, e
outra subjetiva/intersubjetiva, pois seria a partir do encontro delas que se
estabeleceria uma realidade social. Porém, para que o bairro extrapole os
limites objetivos a ele impostos, é preciso que o habitante se identifique com
ele, ou seja, que haja uma empatia entre o indivíduo e o espaço onde ele vive,
o que criaria uma sensação de pertencimento em relação ao bairro, que passaria
então a ser vivenciado como lugar. É a respeito dessa relação entre o objetivo
e o subjetivo/intersubjetivo que o autor escreve o seguinte:
É imperativo fazer interagirem dialeticamente as duas
dimensões da realidade social, sem o que os bairros serão coisificados (objetivismo: o bairro como uma individualidade objetiva
de formas espaciais e funções, historicamente forjadas no contexto da ação das
“leis gerais da sociedade” e acima das subjetividades) ou então fantasmagorizados (subjetivismo: o bairro é um Espaço vivido e sentido por um
coletivo, mas a realidade sócio-espacial que existe objetivamente, fora da mente
de cada um, não é examinada seriamente e criticada). (p.151 grifos do autor)
Soares (1995) enxerga a
idéia de bairro como sendo construída através de uma noção de origem popular.
Para o habitante da cidade, ele seria um conjunto dotado de uma originalidade
própria. Segundo a autora:
A noção
popular de bairro é muito mais geográfica, mais rica e mais concreta. Ela se
baseia num sentimento coletivo dos habitantes, que têm a consciência de morarem
em tal ou qual bairro. Esse conhecimento global, que cada um tem em residir em
determinado bairro, é fruto da coexistência de uma série de elementos, que lhe
dão uma originalidade, uma individualidade, em meio aos outros bairros que os
cercam. (p.105-106).
Por sua vez,
Tricart (1958) define o bairro como sendo “caracterizado, ao mesmo tempo, por
certa paisagem urbana, por um conteúdo social e por sua função” (TRICART apud SOARES, 1995, p.106). Dessa
maneira, no bairro, a paisagem urbana se definiria pelos diferentes tipos,
estilos e épocas das construções, os tipos de arruamento etc.; o conteúdo
social se expressaria pelo nível de vida dos moradores; e, por função,
entenderíamos como o papel desempenhado pelo bairro dentro de sua estrutura
urbana.
Aos três
elementos elaborados por Tricart, Soares acrescenta mais um: a importância da
individualidade dos bairros. É importante lembrar que a autora destaca o relevo
como importante fator de diferenciação entre os bairros da cidade do Rio de
Janeiro, como é o caso de Santa Teresa. Entretanto, não podemos esquecer a importância
das relações sociais para a construção da identidade de um bairro. Como
exemplo, citamos a Tijuca, bairro da zona norte carioca, onde as relações de
afetividade entre os seus moradores e o espaço vivido atingiram um grau tão
elevado, que se refletiu na construção da figura do “tijucano”.
Sobre o bairro, ele constitui-se para um grande número de indivíduos, no principal espaço vivenciado ao longo do seu dia-a-dia. É nele que, muitas vezes, os laços de amizade e vizinhança se estreitam, criando uma sensação de pertencimento àquele lugar. O bairro se caracteriza, de um modo subjetivo, a partir da vivência e da dimensão coletiva de seus moradores. Dessa maneira, podemos associar identidade e território da seguinte maneira:
A memória se constitui nos “lugares”, nas
“porções de natureza” em que estão enraizados os seus potenciais, dizia Jacques Berque (BERQUE, 1970:478) e a
relação tecida entre a história e o espaço fornece uma base aparentemente
territorial à identidade: ela lhe proporciona um território. A ocupação,
conduzindo o trabalho da sensibilidade sobre o enraizamento físico, confere aos
“pays”, às cidades, aos bairros, uma dimensão simbólica (...), uma qualidade
que secreta o apego. (MARTIN, 1994. apud
CLAVAL, 1999. p.16).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir das análises desenvolvidas ao longo deste artigo, percebemos que a compreensão do bairro se fundamenta numa visão multiescalar. Pensar a cidade a partir desta ótica não é uma das tarefas mais fáceis.
Não podemos encarar a feição de uma cidade ou mesmo de um bairro ou uma
rua como paisagens estáticas. É necessário também compreender os processos
sócio-espaciais que deram a forma e o conteúdo àquela paisagem.
Quando, por exemplo, olhamos para uma rua, praça ou bairro, o que vemos
são formas espaciais inseridas em um espaço urbano que os influencia e
diferencia. É importante insistir que as
formas não podem ser analisadas separadamente de sua função ou conteúdo, pois
não possuem autonomia própria: “o que muitos não conseguiram entender no
passado é que a forma só se torna relevante quando a sociedade lhe confere um
valor social” (SANTOS, 1992, p. 54).
Sendo assim, se estudássemos qualquer
porção do espaço urbano separada do seu significado, suas atividades, suas
funções desempenhadas dentro da cidade e sua evolução histórica, correríamos o
risco de cair naquilo que Corrêa (1995) chama de “espacialismo estéril”, ou
seja, ficaríamos apenas nas aparências, sendo impossível ver a sua essência, a
sua concretização.
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URL CONSULTADA
http://www.formosaonline.com.br/geonline/textos/geografia/geografia_artigos14.htm
[1] Mestre em Geografia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ E-mail: geopaulo.barros@uol.com.br . Professor do ensino médio.
[2] Mestre em Geografia pela Universidade Federal Fluminense – UFF E-mail - bfgeo@uol.com.br Professor do ensino médio.
[3] Apud
Magnoli, Demétrio. A alma histórica da geografia. www.formosaonline.com.br/geonline/textos/geografia/geografia_artigos14.htm